segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Nota: Reforma Psiquiátrica Ameaçada!


À COMISSÃO INTERGESTORA TRIPARTITE (CIT) (*)

(*) Tem composição paritária formada por 18 membros, sendo seis indicados pelo Ministério da Saúde (MS), seis pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e seis pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems). A representação de estados e municípios nessa Comissão é regional, sendo um representante para cada uma das cinco regiões no País, além dos Presidentes de Conass e Conasems. Nesse espaço, as decisões são tomadas por consenso e não por votação.


Nós, da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA), temos acompanhado atentos e preocupados o debate que se processa no interior do governo Dilma sobre as medidas a serem adotadas para o cuidado dos usuários de crack, álcool e outras drogas. É visível o embate interno ao governo relativo à possibilidade de incorporação das chamadas “comunidades terapêuticas” como um recurso do Sistema Único de Saúde passível inclusive, de ser financiado diretamente pelo governo federal.

Tal condição associa-se ao absurdo debate em torno das internações compulsórias de usuários de crack, álcool e outras drogas, posição que, apesar de ser sistematicamente rechaçada pelos equívocos jurídicos e assistenciais que comporta, vem, reiteradamente, sendo reintroduzida com muita força.

Identificamos como ponto de sustentação das propostas apresentadas pelo governo federal, a articulação existente entre a Ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, setores religiosos que se expressam no Congresso Nacional e as Federações das comunidades terapêuticas  que são patrocinadoras do projeto político da Ministra,  senadora eleita pelo Paraná.

Entendemos que o triunfo desta perspectiva representa um retrocesso na política da Reforma Psiquiátrica e uma ameaça para o SUS, num momento em que o próprio governo se vê inundado por crises invariavelmente relacionadas com a malversação de fundos públicos e a corrupção gerada por modos de relação promíscuos, via transferência de dinheiro público para organizações não-governamentais. Reconhecemos que a legitimidade social das comunidades terapêuticas advém de sua condição de serem empreendimentos autônomos, geradas por iniciativas da sociedade no vácuo de respostas públicas para os usuários de álcool e outras drogas por parte do Estado.

A inclusão das comunidades terapêuticas no campo da saúde violará o SUS e a Reforma Psiquiátrica em seus princípios e objetivos e o que é pior, reintroduzirá a segregação como modo de tratamento, objetivo oposto ao que orienta os serviços substitutivos, resgatando no mesmo ato a cruel face de objeto mercantil para o cuidado em saúde, ao privatizar parte dos recursos assistenciais.

Que a escolha por uma comunidade terapêutica e pela supressão dos direitos de cidadania seja a opção de alguns é algo que só pode ser respeitada no plano da decisão individual, mas jamais como oferta da política pública e resposta do Estado à sociedade.

A questão que se coloca hoje, com o confuso, parcial e precipitado debate sobre as drogas, convoca-nos à urgente mobilização em defesa do SUS e da Reforma Psiquiátrica, ameaçados, neste momento, pelo envio, por parte do Ministério da Saúde, à Comissão Intergestora Tripartite (CIT), de proposta de portaria que inclui as comunidades terapêuticas como serviços integrantes da rede de atenção psicossocial.

Apelamos à CIT que não aprove estas portarias ministeriais até que o governo federal estabeleça um diálogo com as entidades que têm se pronunciado contrários a esta forma de se pensar e fazer política. Que se aguarde a Consulta Pública, estratégia gestada pela Secretaria Geral da Presidência da República, onde todos poderão opinar e construir coletivamente uma política para os usuários de álcool e outras drogas e não apenas as Federações de Comunidades Terapêuticas, únicas entidades recebidas pela Presidenta Dilma.

Nossa posição não é sustentada em interesses particulares nem em preferências. É coerente com a ampla mobilização social em todo o país que resultou na IV Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial, fórum que foi claro e decidido neste ponto: comunidades terapêuticas não cabem no SUS, como também não cabem internações compulsórias. O tratamento dos usuários de álcool e outras drogas, incluído neste conjunto o crack, deve seguir os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, sendo também este o caminho a ser trilhado pelo financiamento: a ampliação da rede substitutiva.

III ENCONTRO NACIONAL DA RENILA
Goiânia, 17 a 20 de Novembro de 2011.


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Para ver meus comentários sobre a internação compulsiva de usuários de drogas, ver post sobre políticas para usuários de crack (Boletim CFP - 13 razões para defender uma política para usuários de crack). Quanto à minha opinião sobre as Comundidades Terapêuticas, aconselho a leitura do seguinte artigo: A "reeducação" de Adolescentes em uma Comunidade Terapêutica: o Tratamento da Drogadição em um Instituição Religiosa, por L.M. Raupp e C. Milnitisky-Sapiro (http://www.scielo.br/pdf/ptp/v24n3/v24n3a13.pdf). 

Devo dizer que concordo com as conclusões feitas pelas autoras, mas gostaria de questionar o fato de darmos espaço para as comunidades terapêuticas no SUS. Não me parece correto que instituições de orientação e endoutrinamento católico sejam sustentadas por um Estado de Direito que se proclama laico em sua constituição. Devo dizer, inclusive, que acho pernicioso expor sujeitos em estados de dependência química e/ou sofrimento mental agudo, sensiveis e vulneráveis a qualquer discurso e regime aliciante de performance religiosa, seja esta católica ou de qualquer outra denominação. O amparo e acolhimento em uma religião deve ser uma opção à qual o usuário da Comunidade Terapêutica possa acessar por livre e espontânea vontade, não sendo o pivô e método terapêutico duma verdadeira teoergoterapia.   Até o momento em que o amparo religioso não seja devidamente dimensionado nas Comunidades Terapêuticas como opção, entre tantas outras, para a subjetivação, superação ou convivência com o impasse e sofrimento psíquico, narrativo ou existêncial do sujeito, não vejo onde essas instituições haveriam de caber no SUS ou ser consideradas como uma alternativa para as lacunas bocejantes do sistema público de saúde. 

Pergunta terrível que se faz um psicólogo cada vez mais paranóico: estaria o Estado, mancomunado com o Vaticano, a propor campos de reeducação? A propósito, fica a dica: leiam A Scanner Darkly (O Homem Duplo), de Phillip K. Dick, como insumo literário divertido, profundo e perturbador para esta discussão.  

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