sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Da série "Ensino Superior em Crise" - Diabos! O que sou: Aluno ou Cliente?!



Desde a edição da medida provisória que legaliza a obtenção de lucro por parte das Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, vários autores vêm observando o sucateamento e empobrecimento do currículo de ensino das várias disciplinas propostas.

Passamos por novos tempos, com novas exigências de mercado, onde a mão de obra não especializada do operário e profissional do terceiro setor tem se desvalorizado frente à crescente tendência de automatização dos setores industriais e a especialização e dinamização do mercado terciário.

Então para possibilitar um cenário onde haja contingente de trabalho capacitado, o que seria feito pelas IES tanto públicas quanto privadas, seria necessário aumentar a qualidade e acesso ao ensino superior. No entanto ocorre o contrário: as IES públicas, como observam Sobrinho e Brito (A Educação Superior no Brasil: Principais Tendências e Desafios; 2008), são menosprezadas pela gestão pública e criticadas pelo privado como sendo ineficazes em sua gestão, calcificadas em seus currículos e de pouca utilidade para a economia ou indústria.

Despontam então as IES privadas como solução; não obstante estas se provam elusivas: seus currículos são fracos e incompletos formando profissionais pouco aptos para o mercado; seus objetivos estritamente lucrativos desvirtuam o que seria um ambiente para a formação das mentes e intelectos de profissionais e, assim, retiram valor potencial de um conhecimento adquirido: a mão de obra do profissional formado (Sobrinho e Brito, 2008).

Porque, então, as IES privadas, que seriam reguladas pela “mão invisível” do mercado, não cumprem com os anseios do mesmo? Seria necessário ir à unidade básica que conforma a universidade: os alunos, que por acaso também são clientes. Portanto não seria o aluno, como cliente, uma das peças fundamentais na exigência de um parâmetro e nível de qualidade para a IES privada? Mas, será que este aluno se vê como cliente, e mais além e fundamentalmente, sabe este cliente que é um aluno?

Curioso, como psicólogo social que sou, decidi conversar com amig@s que ainda frequentam  uma IES privada de Brasília e ver o que tinham a dizer sobre meu questionamento. Eis o que ouvi...

- Pagar é ter: “Porque, pelo fato de você estar pagando, você espera um monte de coisas, que às vezes uma universidade pública não te proporciona.”; “(...) por que como eu te disse, assim, quando a gente paga isso é uma garantia, pelo menos se o ar condicionado quebrar eu vou poder reclamar, se tiver faltando professor eu vou poder reclamar, então esse é um ponto positivo, em vista das universidades públicas (...).” Ao observar o discurso dos alunos em relação aos aspectos materiais e presença dos professores em sala de aula, percebi que estes estão profundamente ligados à noção subjacente de que o fator crítico, para a existência de ambas as condições, é a troca normatizada de valor monetário em uma relação contratual que produza as condições educacionais necessárias. Uma percepção parcial de exercer o papel de cliente é percebida no ato consciente de consumo do produto e a espera da disponibilidade de um serviço.

- Aprender, mas nem tanto: “Aqui é tudo pronto, é tudo dado, então a gente tem que simplesmente, assim, no limite do professor, a gente tem que fazer o que ele manda e assim, já é um conhecimento muito cristalizado por parte dos professores, mas eu procuro ler coisas por fora pra não ficar muito presa ao que vejo na faculdade.”; “Olha, ultimamente ta uma catástrofe, ta defasado, porque a universidade não oferece nada (...)”. Vejo nestas narrativas, inclusive de forma enfática, que a pesar do estabelecimento claro de uma relação comercial que caracteriza o papel de cliente, e de ser oferecido um serviço contratualmente estabelecido, o indivíduo, que também é aluno, não sente que o conteúdo apresentado seja suficiente para a sua capacitação profissional. É perceptível a frustração destes indivíduos-alunos/as. Esse processo poderá se traduzir em alunos com experiências universitárias incompletas, repletos de incertezas, e em profissionais incapacitados que não estarão prontos para enfrentar o dinamismo do mercado global (Sobrinho e Brito, 2008).    

- O aluno anômico: “Pois é, o (IES privada) não dá margem, já tentei participar, dá uma opinião de que alguma coisa não ta funcionando bem, só que assim, por mais que você junte quarenta alunos, eles já são uma instituição tão cristalizada que eles não alteram mais (...)”; “Mais cliente, porque falta um espaço pra gente ser mais aluno, ou falta a minha própria atitude de estar mais presente na faculdade, tentando modificar alguma coisa, atuando dentro dela. Por isso me sinto mais cliente porque me parece que a minha contribuição é muito pouca, a troca que eu faço dentro da universidade é muito pouca.” Quando há uma ausência de espaços para a produção de diálogos é natural que comece um processo de alienação, de distanciamento das partes envolvidas no processo, o que aponta para uma relação unidirecional institucionalizante, a distribuição e produção heterogênea de poder e discurso. Se o aluno demonstra sentir que não tem espaço para manifestar ativamente seu papel, podemos intuir o sobrepujar da característica comercial da IES que, como vimos em Sobrinho e Brito (2005), tem nefastos efeitos sobre a eficácia e ethos acadêmico da instituição.  

- O cliente mudo: “Aí vem aquele lance, de você estar pagando, de ser cliente. Se você faz um requerimento ou uma reclamação, você quer que aquele evento seja levado a sério, porque você está pagando um serviço do qual você está reclamando. Então tem que ser algo que seja visto com olhos sérios, etc.”; “Tipo assim, eu já fiz uma reclamação sobre a coordenadora do curso e não mudou nada. Pelo que eu fiquei sabendo, não foi a única reclamação, já foram várias, e tipo assim, se já tem várias reclamações, porque não muda nada? Porque, tipo assim direitos do consumidor? Pô, nenhum! Cadê?! (risos).” Aqui surge uma fala de freqüente ocorrência em salas de aula de IES privada ‘sou cliente, estou pagando’. Frase que indicaria a existência de uma dinâmica comercial ou o empoderamento de um indivíduo frente ao modus operandi da instituição, que na verdade, ficam no plano do desejo de uma dinâmica ideal ou de uma ineficaz rebelião vocalizada. Se o aluno sente a incerteza de sua situação perante a produção do corpo acadêmico, o cliente parece começar a perceber que à pesar de seu ônus econômico, pagar nada mais é que uma ilusão de controle ou participação. 

- Ser ou não ser um que seja: “(...) eles te escutam pra você ficar aqui, então ser cliente de alguma maneira favorece ser aluno. E prejudica também, porque tem essa visão de que ela é uma aluna mais é uma cliente também... Então ‘é só mais uma aluna’, você fica nesse papel que não é tão importe, você é só mais um e vira tudo a mesma coisa.”;  Esta última narrativa é clara: ser aluno ou cliente, a pesar de ser inseparável dentro da realidade da IES privada, é uma questão de conveniência estatutária. Ao alternar implicitamente o individuo entre um papel e outro dentro das funções institucionais e não produzir espaços de dialogo, a IES privada parece obter que nenhum deles possa se manifestar completamente, desviando as ações dos indivíduos que a freqüentam em direção a um espaço de subjetivação ambíguo que turva as suas possibilidades de ação e possibilita a manutenção de um status quo

Complicado, hein? O quadro exposto pela manifestação dos alunos/clientes me pareceu bastante claro, além de confirmar em primeira mão algumas das observações feitas por Sobrinho e Brito: o papel de aluno é um de alguma incerteza e insatisfação, o que nos remete ao papel de cliente onde vemos que não há uma relação comercial que se funda sobre uma dialética de aprimoramento do serviço requerido pela demanda, e sim a apresentação imposição do serviço. Confirmei esta observação nas narrativas obtidas do papel aluno, de que o ensino é cristalizado e necessita de complementação externa, indicando que o conteúdo oferecido é insuficiente para formação de um profissional que seja competitivo. O que pode ser feito então? A compreensão, conscientização desse paradigma por parte do aluno/cliente e sua apresentação a IES privada poderia ser a solução para os efeitos nefastos do empobrecimento do ensino na própria. Poderia representar um retrocesso positivo na perniciosa tendência do lucro pelo lucro, levando à transformação da IES privada em um círculo virtuoso, e ainda rentável, de produção de profissionais capacitados para lidar com seus anseios intelectuais subjetivos e necessidades objetivas de trabalho. 

Este será o primeiro de uma série de ensaios sobre a educação superior em Brasília. Minha proposta é entrar em universidades públicas também, fazer etnografias informais e trazer a vocês o que for narrado. Posso anunciar, imediatamente, outros dois artigos: um será sobre a ditadura da mediocridade em sala de aula - imposta pelos próprios alunos - e outro sobre um ensaio comentando o papel do intelectual neste século frente à academia, sociedade civil e produção linguística, escrito por Cristovam Buarque para o excelente livro O Desafio Ético. Aliás, aconselho vivamente sua leitura para o enriquecimento de qualquer mente crítica compromissada com um pensamento honesto e impiedoso. 

Muito obrigado!

2 comentários:

  1. Pedro, gostei muito das suas reflexões. Realmente precisamos repensar o que queremos no ensino superior. Mais do que isso, os alunos querem ser sujeitos ou não nesse processo? É uma inquietação que me acompanha permanentemente. Um grande bj.
    Valéria

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  2. Muito obrigado pelo comentário, professora! Quanto à subjetivação dos alunos no processo educacional, bom, farei um ensaio sobre isso, dessa vez entrevistando os professores. Vc gostaia de ser entrevistada?

    Beijo!

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