Desde a edição da medida
provisória que legaliza a obtenção de lucro por parte das Instituições de
Ensino Superior (IES) privadas, vários autores vêm observando o sucateamento e
empobrecimento do currículo de ensino das várias disciplinas propostas.
Passamos por novos tempos,
com novas exigências de mercado, onde a mão de obra não especializada do
operário e profissional do terceiro setor tem se desvalorizado frente à
crescente tendência de automatização dos setores industriais e a especialização e dinamização do
mercado terciário.
Então para possibilitar um
cenário onde haja contingente de trabalho capacitado, o que seria feito pelas
IES tanto públicas quanto privadas, seria necessário aumentar a qualidade e acesso ao
ensino superior. No entanto ocorre o contrário: as IES públicas, como observam
Sobrinho e Brito (A Educação Superior no Brasil: Principais Tendências e Desafios; 2008), são menosprezadas pela gestão pública e criticadas pelo
privado como sendo ineficazes em sua gestão, calcificadas em seus currículos e
de pouca utilidade para a economia ou indústria.
Despontam então as IES
privadas como solução; não obstante estas se provam elusivas: seus currículos
são fracos e incompletos formando profissionais pouco aptos para o mercado;
seus objetivos estritamente lucrativos desvirtuam o que seria um ambiente para
a formação das mentes e intelectos de profissionais e, assim, retiram valor
potencial de um conhecimento adquirido: a mão de obra do profissional formado
(Sobrinho e Brito, 2008).
Porque, então, as IES
privadas, que seriam reguladas pela “mão invisível” do mercado, não cumprem com
os anseios do mesmo? Seria necessário ir à unidade básica que conforma a
universidade: os alunos, que por acaso também são clientes. Portanto não seria
o aluno, como cliente, uma das peças fundamentais na exigência de um parâmetro
e nível de qualidade para a IES privada? Mas, será que este aluno se vê como
cliente, e mais além e fundamentalmente, sabe este cliente que é um aluno?
Curioso, como psicólogo social que sou, decidi conversar com amig@s que ainda frequentam uma IES privada de Brasília e ver o que tinham a dizer sobre meu questionamento.
Eis o que ouvi...
-
Pagar é ter: “Porque, pelo fato de você estar pagando, você espera um
monte de coisas, que às vezes uma universidade pública não te proporciona.”;
“(...) por que como eu te disse, assim, quando a gente paga isso é uma
garantia, pelo menos se o ar condicionado quebrar eu vou poder reclamar, se
tiver faltando professor eu vou poder reclamar, então esse é um ponto positivo,
em vista das universidades públicas (...).” Ao observar o discurso dos alunos
em relação aos aspectos materiais e presença dos professores em sala de aula,
percebi que estes estão profundamente ligados à noção subjacente de que o fator
crítico, para a existência de ambas as condições, é a troca normatizada de
valor monetário em uma relação contratual que produza as condições educacionais
necessárias. Uma percepção parcial de exercer o papel de cliente é percebida no
ato consciente de consumo do produto e a espera da disponibilidade de um
serviço.
-
Aprender, mas nem tanto: “Aqui é tudo pronto, é tudo dado, então a gente tem
que simplesmente, assim, no limite do professor, a gente tem que fazer o que
ele manda e assim, já é um conhecimento muito cristalizado por parte dos
professores, mas eu procuro ler coisas por fora pra não ficar muito presa ao
que vejo na faculdade.”; “Olha, ultimamente ta uma catástrofe, ta defasado,
porque a universidade não oferece nada (...)”. Vejo nestas narrativas,
inclusive de forma enfática, que a pesar do estabelecimento claro de uma
relação comercial que caracteriza o papel de cliente, e de ser oferecido um
serviço contratualmente estabelecido, o indivíduo, que também é aluno, não
sente que o conteúdo apresentado seja suficiente para a sua capacitação
profissional. É perceptível a frustração destes indivíduos-alunos/as. Esse
processo poderá se traduzir em alunos com experiências universitárias
incompletas, repletos de incertezas, e em profissionais incapacitados que não
estarão prontos para enfrentar o dinamismo do mercado global (Sobrinho e Brito,
2008).
- O
aluno anômico: “Pois é, o (IES privada) não dá margem, já tentei
participar, dá uma opinião de que alguma coisa não ta funcionando bem, só que
assim, por mais que você junte quarenta alunos, eles já são uma instituição tão
cristalizada que eles não alteram mais (...)”; “Mais cliente, porque falta um
espaço pra gente ser mais aluno, ou falta a minha própria atitude de estar mais
presente na faculdade, tentando modificar alguma coisa, atuando dentro dela.
Por isso me sinto mais cliente porque me parece que a minha contribuição é
muito pouca, a troca que eu faço dentro da universidade é muito pouca.” Quando
há uma ausência de espaços para a produção de diálogos é natural que comece um
processo de alienação, de distanciamento das partes envolvidas no processo, o
que aponta para uma relação unidirecional institucionalizante, a distribuição e
produção heterogênea de poder e discurso. Se o aluno demonstra sentir que não
tem espaço para manifestar ativamente seu papel, podemos intuir o sobrepujar da
característica comercial da IES que, como vimos em Sobrinho e Brito (2005), tem
nefastos efeitos sobre a eficácia e ethos
acadêmico da instituição.
- O
cliente mudo: “Aí vem aquele lance, de você estar pagando, de ser
cliente. Se você faz um requerimento ou uma reclamação, você quer que aquele
evento seja levado a sério, porque você está pagando um serviço do qual você
está reclamando. Então tem que ser algo que seja visto com olhos sérios, etc.”;
“Tipo assim, eu já fiz uma reclamação sobre a coordenadora do curso e não mudou
nada. Pelo que eu fiquei sabendo, não foi a única reclamação, já foram várias,
e tipo assim, se já tem várias reclamações, porque não muda nada? Porque, tipo
assim direitos do consumidor? Pô, nenhum! Cadê?! (risos).” Aqui surge uma
fala de freqüente ocorrência em
salas de aula de IES privada ‘sou cliente, estou pagando’. Frase que indicaria
a existência de uma dinâmica comercial ou o empoderamento de um indivíduo
frente ao modus operandi da
instituição, que na verdade, ficam no plano do desejo de uma dinâmica ideal ou
de uma ineficaz rebelião vocalizada. Se o aluno sente a incerteza de sua
situação perante a produção do corpo acadêmico, o cliente parece começar a
perceber que à pesar de seu ônus econômico, pagar nada mais é que uma ilusão de
controle ou participação.
- Ser ou não ser um que seja: “(...) eles te escutam pra você ficar
aqui, então ser cliente de alguma maneira favorece ser aluno. E prejudica
também, porque tem essa visão de que ela é uma aluna mais é uma cliente
também... Então ‘é só mais uma aluna’, você fica nesse papel que não é tão importe,
você é só mais um e vira tudo a mesma coisa.”; Esta última narrativa é clara: ser aluno ou cliente, a pesar
de ser inseparável dentro da realidade da IES privada, é uma questão de
conveniência estatutária. Ao alternar implicitamente o individuo entre um papel
e outro dentro das funções institucionais e não produzir espaços de dialogo, a
IES privada parece obter que nenhum deles possa se manifestar completamente,
desviando as ações dos indivíduos que a freqüentam em direção a um espaço de
subjetivação ambíguo que turva as suas possibilidades de ação e possibilita a
manutenção de um status quo.
Complicado, hein? O quadro exposto pela manifestação dos alunos/clientes me pareceu bastante claro,
além de confirmar em primeira mão algumas das observações feitas por Sobrinho e
Brito: o papel de aluno é um de alguma incerteza e insatisfação, o que nos
remete ao papel de cliente onde vemos que não há uma relação comercial que se
funda sobre uma dialética de aprimoramento do serviço requerido pela demanda, e
sim a apresentação imposição do serviço. Confirmei esta observação nas
narrativas obtidas do papel aluno, de que o ensino é cristalizado e necessita
de complementação externa, indicando que o conteúdo oferecido é insuficiente
para formação de um profissional que seja competitivo. O que pode ser feito
então? A compreensão, conscientização desse paradigma por parte do
aluno/cliente e sua apresentação a IES privada poderia ser a solução para os
efeitos nefastos do empobrecimento do ensino na própria. Poderia representar um
retrocesso positivo na perniciosa tendência do lucro pelo lucro, levando à
transformação da IES privada em um círculo virtuoso, e ainda rentável, de
produção de profissionais capacitados para lidar com seus anseios intelectuais
subjetivos e necessidades objetivas de trabalho.
Este será o primeiro de uma série de ensaios sobre a
educação superior em Brasília. Minha proposta é entrar em universidades
públicas também, fazer etnografias informais e trazer a vocês o que for narrado.
Posso anunciar, imediatamente, outros dois artigos: um será sobre a ditadura da mediocridade em sala de aula
- imposta pelos próprios alunos - e outro sobre um ensaio comentando o papel do
intelectual neste século frente à academia, sociedade civil e produção linguística,
escrito por Cristovam Buarque para o excelente livro O Desafio Ético. Aliás, aconselho vivamente sua leitura para o enriquecimento
de qualquer mente crítica compromissada com um pensamento honesto e impiedoso.
Muito obrigado!
Pedro, gostei muito das suas reflexões. Realmente precisamos repensar o que queremos no ensino superior. Mais do que isso, os alunos querem ser sujeitos ou não nesse processo? É uma inquietação que me acompanha permanentemente. Um grande bj.
ResponderExcluirValéria
Muito obrigado pelo comentário, professora! Quanto à subjetivação dos alunos no processo educacional, bom, farei um ensaio sobre isso, dessa vez entrevistando os professores. Vc gostaia de ser entrevistada?
ResponderExcluirBeijo!