sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Os Senhores Cármicos do Capitalismo: contribuições da Psicologia Organizacional ao capitalismo pós industrial




Uma velha polêmica me persegue desde os dias da faculdade. É um tópico espinhoso que buscarei abordar com a maior consideração pelos colegas da área. Essencialmente é uma análise a partir de minha perspectiva à respeito de uma das vertentes da psicologia: gostaria de explorar algumas impressões próprias sobre determinadas concepções da Psicologia Organizacional às quais tive acesso recentemente enquanto pesquisava o conceito de cultura organizacional.


De antemão tenho que estabelecer algumas premissas de onde se originará toda discussão posterior. Acredito, apoiado sobre considerável evidência que se alastra por boa parte da produção acadêmica das ciências humanas – e dos movimentos sociais dos últimos trinta anos – que o presente sistema econômico ocidental – o capitalismo da sociedade pós industrial – não é capaz de produzir uma sociedade que vá além de um projeto de democracia. Aliás não creio que de fato exista uma democracia. Me parece que temos – no Brasil - um oligopólio plutocrático atravessado por direitos humanos e instituições moderadoras. Em outras palavras temos a perpetuação no poder de poucas elites brasileiras, perpetuação habilmente inscrita como o desejo da população, onde algumas instituições da estrutura estatal salvaguardam alguns interesses dessa maioria.

Além disso concordamos em hipostasiar a disciplina econômica e torná-la o discurso e leitura protagonista dos processos históricos do nosso ocidente. Isso implica numa interpretação e construção de mundo por um registro discursivo e performático comercial, que em seu devido tempo agenciou e territorializou os nosso afetos e corpos. Assim somos criados e nos criamos produtores e consumidores, quando não refugos, marginais que não são agenciáveis pelos dispositivos econômicos de controle, que determinam até mesmo a construção e ratificação de nossas identidades subjetivas.

Vou levar esta última consideração ao extremo: vivemos em um mundo onde um sujeito chamado Steve Jobs adquiriu estatuto de celebridade global, modelo de comportamento social e ícone “cult” porque vendeu artefatos de tecnologia informacional cuja necessidade de aquisição ele mesmo criou e, em seguida, convenceu aos outros de que era própria de cada um. É o mesmo mundo no qual não fazer parte de uma determinada força de trabalho, seja ela formal ou informal, pode resultar em estados de subalteridade, violência, sofrimento psíquico e óbito.

Mas não pretendo discutir neste texto a alternativa melhor ao mundo que apresentei, até porque foge ao escopo do tema. E caso discorde com as premissas apresentadas, descontinue a leitura deste texto, pois ela não lhe agradará.

Logo, vamos à inquietação: não consigo conceber a psicologia organizacional como um agente promotor de bem estar no local de trabalho.

...

CALMA!

...

Antes é necessário definir o que é que concebo como sendo bem estar. Certamente posso classificar a ausência de patologias relacionadas ao trabalho, estratégias de mitigação do sofrimento do trabalhador, estabelecimento de relações de trabalho edificantes e finalmente, o trabalho como espaço para a subjetivação e construção de identidade, como elementos que formam um estado de bem estar. Acho que todas as iniciativas citadas são mais do que válidas para aprimorar o local de trabalho e a cultura organizacional geral do capitalismo tardio. Afinal uma maioria anônima, intangível e inominável - composta por uma pequena elite global - diz que não temos alternativas ao status quo do capitalismo, convencendo-nos, portanto, a fazer o melhor que pudermos com o que temos.

Porém, é exatamente aí que o bicho pega. Posso considerar que uma série de estratégias para o aumento da produção e eficiência de uma organização são uma maneira de produzir um estado de bem estar? Afinal de contas, ao fazer recrutamento, seleção de pessoal, treinamento e diagnóstico organizacional estou, de fato, alocando e agenciando um trabalhador que precisa de um salário para viver e assim produzir estados de bem estar. Todavia, ao mesmo tempo, estou trabalhando para aumentar o lucro de um/a detentor/a dos meios de produção que, além de provavelmente redistribuir sua riqueza entre outros setores da oligarquia, irá manter vigentes as relações heterogêneas e dispositivos de poder disciplinar capitalista – ou seja, que irá sustentar o sistema econômico que indubitavelmente nos adoece.    

Indo ao cerne da questão e estabelecendo uma pergunta/síntese: a psicologia organizacional é mais um dispositivo de poder da sociedade de controle? Caso seja, por quê existe um ramo da psicologia para acomodar, aprimorar e perpetuar as performances e discursos dessa estrutura despótica de poder?

Não digo nada de novo quando sugiro que  a  “falta” do sujeito psicanalítico “Ocidental” não se origina da castração, resultando, na verdade, dos agenciamentos de discursos e performances que surgiram com os primórdios do mercantilismo e liberalismo europeus e com a constituição e estabelecimento das classes burguesas. Para sustentar esta afirmação, eis uma linha de raciocínio: caso não houvesse uma revolução tecnológica/industrial na Europa que afetasse os meios de produção, polarizasse classes sociais em capital e trabalho, urbanizasse uma sociedade rural e reiterasse o modelo católico/cristão de família nuclear biparental, heterossexual, não haveria os elementos para a triangulação edípica e, portanto, não existiria uma teoria psicanalítica do sujeito. 

Com isso em mente é possível raciocinar que vivemos num sistema socioeconômico capitalista ocidental que se perpetua por ter se apropriado e criado elementos de nossos processos de subjetivação. A título de exemplo, posso falar da adolescência como a concebemos hoje, resultado direto de um conjunto de políticas econômicas e movimentos sócio-culturais pós II GM. Achamos comumente que esse estágio do desenvolvimento humano sempre existiu. Contudo, antes da década de cinqüenta, o termo “adolescente” era restrito a discussões acadêmicas e publicações especializadas. A palavra sequer definia o fenômeno ao qual estamos tão acostumados, fazendo referência a uma fase do desenvolvimento humano que foi “descoberta” pelo psicólogo Stanley Hall (1904) que, por sua vez – num soberbo insight! – a atribuiu às mudanças socioeconômicas da virada do século vinte. Mas é somente no mundo do Plano Marshall que essa fase do desenvolvimento é vista pela primeira vez como um mercado potencial. Afinal, numa era mais próspera onde ocorre a expansão dos mercados e do crédito, um grupo social/etário que se encontra em um limbo identitário – e podendo ser convencido de que adquirindo mercadorias estará, em realidade, adquirindo peças para sua identidade – é claramente um público que pode render um bom lucro.

Obtendo dessa forma, e de outras, o poder disciplinar sobre os rumos da nossa subjetivação, caberá ao sistema capitalista ocidental controlar nossa viabilidade identitária ou nos impor o ostracismo social. Essa viabilidade, resultante da ratificação e legitimação do sujeito pelo coletivo, ocorrerá somente se ele/a trabalhar, ou seja, ajudar a enriquecer uma mínima minoria que por sua vez irá proporcionar certas condições para que o empregado trabalhe mais e assim possa continuar sendo alguém. Desempregado/a, portador/ra de deficiência física, doente mental, dependente químico, aposentado/a existem em estados de maior ou menor subalteridade porque não estão inscritos no sistema produtivo. Em alguns dos casos anteriores foram, e ainda são necessários movimentos de ação afirmativa que promovam políticas públicas para que essa inscrição ocorra independente dos parâmetros de validação identitária do sistema socioeconômico vigente.  

Me parece inconcebível que o estabelecimento de uma relação intersubjetiva do gênero não gere ansiedade, angustia, mal estar. Mesmo difusa, dissimulada, maquiada e turbinada, a mensagem é clara e desprovida de criatividade: você depende de mim e dos meus para ser/ter o seu e os seus. Caso você não se adéqüe ao programa você estará sujeito ao descarte. Mas não se preocupe, temos vários programas que podem se aproximar daquilo que nós precisamos e dizemos que você quer.

Eis que se apresenta a polêmica: ao promover o bem estar no trabalho, ou ajudar a adequar o sujeito ao programa, a psicologia organizacional não só perpetua como aprimora esse cenário tétrico liberal-orwelaino (paradoxal, mas concreto) que parece saído de um filme de ficção científica. O aumento dos estados patológicos de sofrimento psíquico, violência, abuso de drogas, fármacos e adoecimento físico é uma externalidade direta duma somatização da angustia, fadiga e ansiedade gerada pelo capitalismo pós industrial. Fato: você sabia que sentar por longos períodos de tempo (superiores a quatro horas seguidas) aumenta drasticamente o risco de doenças cardíacas e metabólicas, além de favorecer processos inflamatórios? É por isso que você faz ginástica laboral, para poder continuar sentado as outras quatro horas, das oito, de trabalho. Um exemplo de promoção do bem estar e manutenção da produtividade.

Colegas da organizacional por favor comentem!



8 comentários:

  1. Bleger em sua obra sobre psico-higiene/institucional afirma que toda e assim chamada psicologia aplicada tem em si uma alienação como vício. Acho que a problematização não está apenas na psi organizacional, mas na condição subalterna e despolitizada de psis e seus sedutores-anfitriões-institucionais. Ser aplicado é a porta para se perder o rumo do que principia nosso saber... Poderia até ampliar essa questão do "aplicado" e sair do mundo psi, mas para não perder o foco, a questão é que temos que discutir Trabalho que, enfim, expressa a atividade humana, e não simplesmente Organizações, que serve a (re)produção de saberes instituídos, por mais bem intencionados que sejamos. Aliás, "boa intenção" está longe de ser critério para avaliar nossa praxis... Outro dia estava também a pensar que seria impossível fazer "seleção de pessoas" sem violar direitos.... ainda bem que não estou neste lugar esquizofrenizante... em outros, infelizmente. Mas a vida é assim mesmo....vamos à luta!

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  2. Professora, obrigado pelo comentário ao mesmo tempo pontual e abrangente! De fato temos que discutir a atividade Trabalho e o problema da "condição subalterna e despolitizada de psis e seus sedutores-anfitriões-institucionais" (fantástico!) e epsero que este ensaio e seu comentário provoquem suadáveis reações adversas, já que o que escrevi não tem objetivo persecutório e sim apresenta uma proposta arqueologia brevíssima, análise e crítica do território no qual se move a psicologia organizacional.

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  3. Concordo integralmente, ratifico e assino embaixo. Nunca acreditei na chamada Psicologia Organizacional, prática que, para mim, consiste meramente em organizar os meios para explorar e otimizar a capacidade humana de auto-adestramento (que um dia foi a capacidade de resiliência às adversidades, como fator de sobrevivência da espécie), a fim de otimizar o lucro, filho dileto deste Senhor sem rosto que a todos nós escraviza, o Mercado.

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  4. "Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam."

    Parabéns pelo blog!

    Kika

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  5. Pedro, sua reflexão é muito interessante. Mas eu te pergunto: o que se fazer quando vivemos no capitalismo?
    o psicólogo organizacional é pego pra cristo como o massificador absoluto e construtor retroativo do capitalismo, mas, será que aquele que está dentro da sala de aula, igualmente, não contribui para a mesma causa, em outra instância?
    Só por que o psicólogo organizacional está no monstro e assombração capitalista chamada "empresa" não acredito que ele contribua menos para o desenvolvimento do ser humano, e nem tão mais assim para ostentar o capitalismo.
    Hoje em dia as relações de trabalhao estão se modificando, e você pode claramente trabalhar em casa, assim como vocÊ está fazendo agora, com esse blog. Só por causa disso vocÊ é um psicólogo que não contribui para o capistalismo?!
    Aquele psicólogo que se trancafia numa escola particular perpetua o capitalismo da mesma forma, assim como aquele que cobra 400 reais por uma consulta.
    A questão é: o que podemos fazer para melhorar esse sistema, torná-lo mais humano e digno? Porque afinal de contas, ele não vai sumir porque estamos indignados, e nem se modificar de uma forma plena a esse ponto. Não dentro das empresas.
    Acho que antes de criticarmos o psicólogo organizacional, deveriamos agradecer que alguém tem a coragem de fazê-lo porque se com ele as coisas estão ruins, imagina sem...
    Precisamos nos precoupar em formar esse profissional com valores ético, políticos e revolucionários, no sentido de levarem uma visão crítica para o trabalho e para as relações humanas que envolve.
    Situações delicadamente humanas, e regadas a competitividade, pois envolvem, sim, lucro, dinheiro. Para a empresa em geral e para vocÊ ter o que comer quando chegar em casa.
    Finalmente, sem um psicólogo organizacional competente e crítico, nem a casa de parto criada conseguirá ser gerida e funcionar, nem os aeroportos para fazermos nossas viagens culturais, nem as bibliotecas que adoramos adentrar, nem as empresas de celulares que nos fazem quase que respirar, entre muitos etcéteras...

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  6. Car@ anônimo, seu comentário é mais do que pertinente. De fato:

    "Precisamos nos precoupar em formar esse profissional com valores ético, políticos e revolucionários, no sentido de levarem uma visão crítica para o trabalho e para as relações humanas que envolve".

    Exatamente. Não podemos nos conformar com uma ética utilitarista que justifica a "alocação"de sujeitos com se fossem bens de consumo. Não podemos formar psicólogos que não comprendam que suas atividades e discursos são inváriavelmente políticos, portanto, tornando-os imediatamente responsáveis pelo estado das coisas. Não podemos nos furtar a ser verdadeiramente revolucionários, propondo e construindo, a todo instante, possibilidades de se repensar este sistema sócioeconômico falho.

    Afinal, se estamos indignados, ou seja fomos ofendidos e estamos revoltados, porque haveríamos de manter este estado das coisas? Porque manter um sistema humanizado se podemos nos propor sistemas humanos? Será o conformismo revolucionário?

    Tod@ psicólog@ e qualquer vertente da psicologia é responsável por essa proposta. Assista os videos do Foucault e leia os ensaios de dois posts desse blog para corroborar essa afirmativa.

    E sim, escrevo neste blog, que de fato é um corolário cultural do capitalismo, me permitindo no entanto, criticá-lo. Se não tivesse um computador, publicaria panfletos; se não tivesse tinta e pena pintaria minha mão nas paredes. Essa é minha responsabiliade ética, política e revolucionária.

    Muito obrigado pela reflexão!

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  7. Concordo em gênero, número e grau!
    Não devemos viver indignados e revoltados sem fazer algo para que nossos sistemas sejam, - como você bem colocou - humanos. Para mim é aí que reside a mágica-política (se me permite a expressão) da psicologia, como um todo, e em grande parte, da sua vertente organizacional que sim, concordo contigo, corrobora todo um sistema; entretanto, só o faz se de forma arbitrário e sem compromisso ético-político. No final das contas, se o psicólogo, enquanto ser humano, for alguém não-revolucionário, ele obviamente entrará na massante tarefa de robô que vemos tantos colegas por aí o fazendo.
    Agora, se forem seres pensantes e críticos, como eu, você e todos aqueles que 'ganham tempo' se engajando em questões políticas e éticas relevantes não somente para nossa profissão como para nossa sociedade, produziremos conhecimento e pessoas mais humanas do que sistemas humanizados que, como você mesmo ressalta, são somente um tapa buraco. E eu não quero estar fazendo uma atividade tosca para me sentir melhor em um trabalho que por excelência é opressor.
    Não.Não quero.

    Mas hoje acredito na psicologia organizacional como uma forma também de questionar o sistema e, claro, de entrar nele para, lá dentro, começar a minha revolução, do zero, em uma sala, para outra, para outra e assim por diante... O que não podemos fazer é deixá-las a mercê do próprio sistema. Por isso, defendo a organizacional (nunca me imaginei falando isso!) da mesma forma como defendo qualquer outra vertente da psicologia, sem rebaixar sua importância ou colocá-la como a senhora cármica do capitalismo (mesma que ela assim o seja). Precisamos ajudá-la, e, para isso, os profissionais precisam olhar mais pra ela, com carinho, atenção e cuidado, pois anda não somente muito carente de atenção (a não ser daqueles que pensam basicamente: DINHEIRO) e, principalmente, de revolução.
    Precisamos de pessoas como você, seres pensantes e críticos, não somente na área de saúde, social, escolar, entre outras tantas, mas TAMBÉM lá dentro, dando olhar à senhora cármica, pois ela, sinceramente, pode trazer imensa mudança ao sistema bruto humanizado e fazer com que ele se torne humano, mesmo por excelência sendo o que é.

    Parabéns pela iniciativa do blog, vou acompanhá-lo!

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  8. Iça! Agora a coisa ficou boa! Obrigado!

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