quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Onde vivem as pulsões: uma breve leitura psicanalítica do livro Onde Vivem os Monstros



A seguir lhes apresento um exercício de estilo singelo e magistralmente bem conduzido. De autoria da psicóloga Laura Pereira, este excelente ensaio nos dá mais um insight acessível de como articular criativamente a psicanálise freudiana. Bravo, Laura! É um prazer poder publicar material com qualidade.

Mesmo que ande às turras com a psicanálise, acho interessante a contribuição que o a teoria tem dado a compreensão do fenômeno da subjetividade. Portanto creio que, quando encontrar a autora, ocorrerá um debate acalorado e faiscante. Talvez o publique aqui...



Sem mais demoras, Laura, é com você:


Onde Vivem os Monstros
é um livro infantil americano escrito em 1963 por Maurice Sendak. A história é a do menino Max que, vestido com sua fantasia de lobo, faz tamanha malcriação em casa que é mandado para a quarto sem jantar pela mãe. Uma vez de castigo, ele se transporta para uma floresta, embarca em um veleiro, navega por meses, até chegar numa ilha, onde vivem os monstros. Lá, ele é o mais monstruoso de todos e é rapidamente coroado rei. Segue-se então uma bagunça geral ordenada por Max e que vai crescendo até o próprio Max mandar os monstros para o quarto de castigo sem comida. Ao ficar sozinho, ele sente falta da comida de casa e de pessoas que gostam dele de verdade. Resolve então voltar para casa, mesmo contrariando os monstros, e ao chegar lá encontra seu jantar ainda quentinho esperando por ele.
 
O livro trata de vários assuntos sujeitos à interpretações psicanalíticas mas neste texto iremos nos concentrar em uma leitura centrada no conceito teórico de pulsão explorado na primeira tópica do aparelho psíquico de Freud. Mais precisamente iremos tentar ilustrar os elementos da pulsão de autoconservação, neste caso alimentar, e da pulsão sexual, aqui oral, que identificamos no livro.



A história se divide em cinco partes começando com a bagunça feita por Max em casa, ilustrada por ele perseguindo o cachorro com um garfo na mão; a privação de comida subsequente pela mãe como castigo; a fuga de Max para um mundo imaginário onde arrisca ser comido; o desejo de Max de ir embora instigado pela fome e finalmente a satisfação de encontrar seu jantar ao voltar para casa. Ora podemos então concluir que existe um tema de fome e comida recorrente no livro. No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud define a fase oral como “canibalesca” e como uma “atividade sexual que ainda não se separou da nutrição, nem tampouco se diferenciaram correntes opostas em seu interior. O objeto de uma atividade é também o da outra, e o alvo sexual consiste na incorporação do objeto.”. Iremos então basear nossa análise nesse conceito de oralidade.

No caso de Max, podemos observar claramente o primeiro dualismo das pulsões desenvolvido por Freud (pulsão de autoconservação e pulsão sexual) e o conceito de “étayage” onde a pulsão sexual vai se apoiar na pulsão de autoconservação. Freud diz que as pulsões sexuais "a princípio, apóiam-se nas pulsões de [auto]conservação; seguem, para encontrar um objeto, os caminhos indicados por [estas]. Uma parte [das pulsões sexuais] permanece ligada às pulsões [de autoconservação], dando-lhes componentes libidinais".  Assim, quando uma pessoa come, devemos distinguir, conceitualmente, a pulsão alimentar (de autoconservação) e a pulsão oral (sexual).Vamos então começar a analisar neste livro as fontes da pulsão oral (sexual) e da pulsão alimentar (autoconservação). Segundo o texto As pulsões e suas vicissitudes, “Por fonte da pulsão entendemos o processo somático que ocorre em um órgão ou em uma parte do corpo e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela pulsão.”. Poderíamos deduzir então que, para Max, a fonte das duas pulsões é o estimulo da boca. Continuando, para Freud, “a meta [pressão] de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser obtida quando o estado de estimulação presente na fonte pulsional é suspenso” ou seja no caso de Max a pressão das duas pulsões seria a satisfação da fome. Em seguida, é no objetivo da pulsão, na redução do desprazer, que veremos uma diferença entre as pulsões aqui analisadas. Na pulsão oral (sexual) o objetivo será a satisfação pelo prazer da zona erógena oral e na pulsão alimentar (autoconservação), ele será simplesmente satisfeito pela ingestão de alimento. Finalmente podemos avançar que a comida seria, neste caso, o objeto da pulsão oral e da pulsão alimentar pois segundo Freud “O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta [pressão]”.
 

              
É importante notar que Freud também diferencia as pulsões de autoconservação das pulsões sexuais, assinalando que a ligação das pulsões de autoconservação é feita aos objetos externos, e portanto, ao princípio da realidade e já as pulsões sexuais são muito mais sujeitas ao puro princípio do prazer e ao registro da fantasia. No caso de Max, as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação estão claramente presentes e interligadas e podemos também observar um conflito interno entre princípio de prazer e princípio de realidade. Quando confrontado à realide, aqui o castigo, Max foge para um mundo imaginário onde pode fazer o que quer, ou seja seguir puramente seu prazer egoísta. Esta resolução de conflito entre prazer e realidade se faz no livro através de “uma viagem terapêutica” e pode ser vista quando ao voltar para seu quarto, ou à realidade, e ver sua comida, Max começa a tirar sua fantasia de lobo, símbolo de algo animal, primitivo, regido apenas pelo prazer.
              



REFERÊNCIAS

Freud, S. (1905). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB. Rio de Janeiro, Imago, vol VII, 1987.

Freud, S. (1915). Os instintos e suas vicissitudes. ESB. Rio de Janeiro, Imago, vol XIV, 1987.

Freud, S. (1916-17). Conferências introdutórias sobre psicanálise. ESB. Rio de Janeiro, Imago, vol XV e XVI, 1987.

Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Freud e o inconsciente, Rio de Janeiro: Jorde Zahar, 1998

Sendak, Maurice, Onde vivem os monstros, São Paulo, Cosac Naify, 2009

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