A seguir lhes apresento um exercício de estilo singelo e magistralmente bem conduzido. De autoria da psicóloga Laura Pereira, este excelente ensaio nos dá mais um insight acessível de como articular criativamente a psicanálise freudiana. Bravo, Laura! É um prazer poder publicar material com qualidade.
Mesmo que ande às turras com a psicanálise, acho interessante a contribuição que o a teoria tem dado a compreensão do fenômeno da subjetividade. Portanto creio que, quando encontrar a autora, ocorrerá um debate acalorado e faiscante. Talvez o publique aqui...
Sem mais demoras, Laura, é com você:
Onde Vivem os Monstros
é um livro infantil
americano escrito em 1963 por Maurice Sendak. A história é a do menino Max que,
vestido com sua fantasia de lobo, faz tamanha malcriação em casa que é mandado
para a quarto sem jantar pela mãe. Uma vez de castigo, ele se transporta para
uma floresta, embarca em um veleiro, navega por meses, até chegar numa ilha, onde
vivem os monstros. Lá, ele é o mais monstruoso de todos e é rapidamente coroado
rei. Segue-se então uma bagunça geral ordenada por Max e que vai crescendo até
o próprio Max mandar os monstros para o quarto de castigo sem comida. Ao ficar
sozinho, ele sente falta da comida de casa e de pessoas que gostam dele de
verdade. Resolve então voltar para casa, mesmo contrariando os monstros, e ao
chegar lá encontra seu jantar ainda quentinho esperando por ele.
O livro trata de vários assuntos sujeitos à
interpretações psicanalíticas mas neste texto iremos nos concentrar em uma
leitura centrada no conceito teórico de pulsão explorado na primeira tópica do
aparelho psíquico de Freud. Mais precisamente iremos tentar ilustrar os
elementos da pulsão de autoconservação, neste caso alimentar, e da pulsão sexual,
aqui oral, que identificamos no livro.
A história se divide em cinco partes
começando com a bagunça feita por Max em casa, ilustrada por ele perseguindo o
cachorro com um garfo na mão; a privação de comida subsequente pela mãe como
castigo; a fuga de Max para um mundo imaginário onde arrisca ser comido; o
desejo de Max de ir embora instigado pela fome e finalmente a satisfação de
encontrar seu jantar ao voltar para casa. Ora podemos então concluir que existe
um tema de fome e comida recorrente no livro. No texto Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, Freud define a fase oral como “canibalesca” e como uma
“atividade sexual que ainda não se separou da nutrição, nem tampouco se
diferenciaram correntes opostas em seu interior. O objeto de uma atividade é
também o da outra, e o alvo sexual consiste na incorporação do objeto.”. Iremos
então basear nossa análise nesse conceito de oralidade.
No caso de Max, podemos observar
claramente o primeiro dualismo das pulsões desenvolvido por Freud (pulsão de
autoconservação e pulsão sexual) e o conceito de “étayage” onde a pulsão sexual
vai se apoiar na pulsão de autoconservação. Freud diz que as pulsões sexuais
"a princípio, apóiam-se nas pulsões de [auto]conservação; seguem, para
encontrar um objeto, os caminhos indicados por [estas]. Uma parte [das pulsões
sexuais] permanece ligada às pulsões [de autoconservação], dando-lhes
componentes libidinais".
Assim, quando uma pessoa come, devemos distinguir, conceitualmente, a
pulsão alimentar (de autoconservação) e a pulsão oral (sexual).Vamos então começar
a analisar neste livro as fontes da pulsão oral (sexual) e da pulsão alimentar
(autoconservação). Segundo o texto As pulsões e suas vicissitudes, “Por fonte
da pulsão entendemos o processo somático que ocorre em um órgão ou em uma parte
do corpo e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica pela
pulsão.”. Poderíamos deduzir então que, para Max, a fonte das duas pulsões é o
estimulo da boca. Continuando, para Freud, “a meta [pressão] de uma pulsão é
sempre a satisfação, que só pode ser obtida quando o estado de estimulação
presente na fonte pulsional é suspenso” ou seja no caso de Max a pressão das
duas pulsões seria a satisfação da fome. Em seguida, é no objetivo da pulsão,
na redução do desprazer, que veremos uma diferença entre as pulsões aqui analisadas.
Na pulsão oral (sexual) o objetivo será a satisfação pelo prazer da zona
erógena oral e na pulsão alimentar (autoconservação), ele será simplesmente
satisfeito pela ingestão de alimento. Finalmente podemos avançar que a comida
seria, neste caso, o objeto da pulsão oral e da pulsão alimentar pois segundo
Freud “O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode
alcançar sua meta [pressão]”.
É importante notar que Freud também diferencia
as pulsões de autoconservação das pulsões sexuais, assinalando que a ligação
das pulsões de autoconservação é feita aos objetos externos, e portanto, ao princípio
da realidade e já as pulsões sexuais são muito mais sujeitas ao puro princípio
do prazer e ao registro da fantasia. No caso de Max, as pulsões sexuais e as
pulsões de autoconservação estão claramente presentes e interligadas e podemos também
observar um conflito interno entre princípio de prazer e princípio de
realidade. Quando confrontado à realide, aqui o castigo, Max foge para um mundo
imaginário onde pode fazer o que quer, ou seja seguir puramente seu prazer egoísta.
Esta resolução de conflito entre prazer e realidade se faz no livro através de “uma
viagem terapêutica” e pode ser vista quando ao voltar para seu quarto, ou à
realidade, e ver sua comida, Max começa a tirar sua fantasia de lobo, símbolo
de algo animal, primitivo, regido apenas pelo prazer.
REFERÊNCIAS
Freud, S. (1905). Os três ensaios sobre a
teoria da sexualidade. ESB. Rio de Janeiro, Imago, vol VII, 1987.
Freud, S. (1915). Os instintos e suas
vicissitudes. ESB. Rio de Janeiro, Imago, vol XIV, 1987.
Freud, S. (1916-17). Conferências introdutórias
sobre psicanálise. ESB. Rio de Janeiro, Imago, vol XV e XVI, 1987.
Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Freud e o
inconsciente, Rio de Janeiro: Jorde Zahar, 1998
Sendak, Maurice, Onde vivem os monstros, São
Paulo, Cosac Naify, 2009
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