quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O Lado Negro do Parto - Parte III: A Violência na Hora do Parto

Voltamos com mais um excelente ensaio de Adèle Valarini sobre os intrincados e obscuros processos que envolvem o parto em nossa cultura ocidental. Este é o terceiro e último ensaio da série. Os outros dois ensaios podem ser vistos aqui no Opus em posts anteriores!



Dia 25 de novembro é o Dia Internacional do Combate à Violência Contra a Mulher. É uma causa nobre, abraçada por milhares de pessoas, que se indignam cotidianamente com os relatos de humiliações e violências físicas e sexuais sofridas pelas mulheres de todas as classes sociais, no mundo todo. Mas, por algum motivo, quando se fala em violência contra a mulher, raramente menciona-se seu aspecto mais violento e predatório: a violência contra a mulher que está parindo, e contra seu filho que está nascendo.

A VIOLÊNCIA NA HORA DO PARTO

Você sabia que 1 em cada 4 mulheres relata ter sofrido algum tipo de abuso ou violência durante o seu parto? Você sabia que um dos maiores motivos da escolha pela cesária não é o medo da dor do parto, mas sim o medo de sofrer algum tipo de violência na hora do parto? Você sabia que a frase mais comum de se ouvir durante o parto é "ano que vem você tá aqui de novo" e a segunda mais comum é: "na hora de fazer, não reclamou, agora fica quieta!"?

Muitos arregalam os olhos diante dessas afirmações, sem saber que isso, na verdade, são os resultados de uma pesquisa recente, publicada em diversas revistas e jornais brasileiros, em fevereiro de 2011.

O momento do parto é um momento propício à violência de gênero. Trata-se de um momento em que a mulher se encontra em uma posição profundamente vulnerável, tanto física quanto psiquicamente, e isso permite à sociedade mantê-la em uma posição inferior e submissa, reforçando inconscientemente o lugar que tem ocupado na sociedade até hoje. 


Enquanto movimentos se organizam para resgatar e amparar mulheres que sofrem estupros, abusos e humilhações em suas casas e em seus empregos, as mulheres que param em instituições públicas e privadas ainda estão completamente a mercê dos profissionais da saúde, e as violências que sofrem são, muitas vezes, consideradas como normais, "apenas rotina do hospital", e ficam por isso mesmo. Não é à toa que o parto é visto hoje como uma experiência terrível, da qual vale a pena escapar sempre que possível. 

DE ONDE VEM ESSA VIOLÊNCIA

O obstetra humanizado Ricardo Jones, autor do livro Memórias do Homem de Vidro, afirma que o parto é um momento em que se confrontam as três esferas que mais amedrontam os seres humanos: o nascimento, a morte e a sexualidade. Ao confrontar-se com o desconhecido, aquilo que é incontrolável, que causa angústia, a tendência humana é criar ritos, para assim ter a ilusão de que a situação está sob controle. 

Parto ou exorcismo?
Hoje em dia, o parto, tanto o normal como a cesariana, está impregnado de uma ritualística quase religiosa: muito do que é feito nessa hora é feito do jeito que é feito porque se aprendeu assim na faculdade, ou porque sempre se fez assim.Raramente se encontram razões médicas reais para a maioria dos procedimentos que são feitos na hora do parto: trata-se, em sua maioria, de rituais, criados para dar-nos a ilusão de que o evento está sendo controlado, quando, na verdade, a única coisa que está sendo controlada, é a mulher que está parindo.


COMO SE EXPRESSA ESSA VIOLÊNCIA


"Quem faz o parto é o médico"
A violência na hora do parto começa quando se coloca a mulher em uma posição passiva, e se encarrega o médico de fazer o parto em seu lugar. A mulher não pare seu filho, está alheia ao que está acontecendo "lá embaixo". Ela não é protagonista de seu parto: está desempoderada.


 desempoderamento feminino na hora do parto cria uma impressão, uma "marca" inconsciente muito forte: a mulher passiva e submissa na hora do parto tende a ser uma mulher mais passiva e submissa em sua vida em geral, uma mãe mais medrosa, e mais dependente de conselhos (sobretudo do pediatra) na hora de tomar decisões acerca de seu papel de mãe.

Vejamos agora, mais em detalhes, algumas facetas dessa violência, tão discreta, porém tão cruel:

A Posição Do Parto

Posição supina de parto
A posição de parto mais comumente adotada nos hospitais brasileiros hoje em dia é a posição supina (deitada de barriga para cima), que, segundo a OMS, o Ministério da Saúde, a Biblioteca Cochrane e todas as fontes da medicina baseada em evidências, é a pior posição para parir, pois o peso da barriga causa uma compressão das artérias principais da mulher, dificultando a oxigenação do bebê e da mulher, e podendo causar sofrimento fetal. Também é uma posição que impede a correta dilatação dos ossos da bacia, diminuindo em até 30% o espaço que o bebê vai ter para passar, e que também dificulta na hora de fazer força, pois o bebê, ao sair, deve ser empurrado para cima, contra a gravidade. Com tantas contra-indicações, porquê então, continua sendo rotina nos hospitais? Bem, porque "facilita o trabalho do médico", que pode enxergar bem e mexer na área toda sem ter de fazer nenhum esforço. E daí se, para a mulher, dificulta muito mais?

A Falta de Privacidade e Desrespeito à Sexualidade

Durante o trabalho de parto no hospital, a mulher perde qualquer direito à privacidade. É comum estarem presentes diversas pessoas da equipe de saúde, entrando e saindo do quarto o tempo todo. É uma realidade, infelizmente, a completa falta de respeito à privacidade da mulher, e o total não-reconhecimento da natureza sexual do fenômeno parto, dentro do ambiente hospitalar. 

Uma mulher em trabalho de parto é vista e tocada por, em média, 16 pessoas, dentro de um hospital universitário. Com as trocas de plantão e a falta de comunicação entre as equipes, a história de "entrar e fazer um toque, para ver como a mãezinha está progredindo", chega quase ao ridículo. A seguinte fala, de uma parturiente secundípara, de 30 anos, retrata bem essa triste realidade:

"o toque [vaginal] era feito por mais pessoas, tinha uma médica que estava fazendo, depois trocou o plantão, aí veio mais gente, acho que uns dez estavam lá [...] uns cinco mais ou menos fizeram o toque na mesma hora [...] fizeram, e depois passava um tempo, e aí vinham tudo ao redor de novo [...] incomoda um pouco, incomodou porque machuca a gente [...] mas tinha que fazer, eu achei que fosse normal também." 

O toque vaginal é um aspecto mais sutil da questão, e é utilizado, geralmente, com 3 propósitos principais:
  • Medir a dilatação do colo uterino: nesse caso, o toque é indolor pois serve apenas para avaliar a dilatação. O toque pode ser usado durante o trabalho de parto, porém não é necessário fazê-lo. Segundo a OMS e o Ministério da Saúde, o toque vaginal não deveria ser feito em excesso, e deveria ser feito apenas com o consentimento da mulher.
  • Proceder a um descolamento manual das membranas amnióticas: trata-se de uma intervenção bastate usada nas últimas consultas do pré-natal, para induzir o parto. Não é recomendada pela OMS como procedimento a ser efetuado de rotina.
  • Proceder a uma dilatação manual do colo do útero: é um procedimento violento, extremamente doloroso, que muitas vezes resulta em edema do colo do útero e indicação de cesariana. Não é recomendado que se faça nunca.

O toque vaginal não deve doer. Se dói, é porque algo está errado: ou a paciente está muito tensa ou o médico está fazendo o toque com muita força. Porém, o que mais se encontra nos relatos de partos hospitalares, disponíveis na internet, são toques dolorosos, violentos, sem aviso prévio; toques acompanhados de abusos verbais, mulheres com seus genitais expostos diante de várias pessoas, sendo manualmente exploradas sem nenhum respeito por suas partes mais íntimas nem por sua sensibilidade. 


Partos traumáticos, marcados por esse tipo de violência, chegam a ter um impacto muito grande na dimensão sexual da mulher, e podem chegar ser tão traumatizantes quanto um estupro, trazendo consequências psicológicas muito similares.

As Intervenções de Rotina

Monitoramento fetal contínuo
É comum, na maioria dos hospitais brasileiros, que a mulher fique deitada durante todo o trabalho de parto, vestida apenas com uma camisolinha que deixa suas costas e bumbum expostos, recebendo soro na veia (muitas vezes adicionado de ocitocina artificial, para aumentar as contrações), e sendo monitorada constantemente por um monitor de batimentos cardíacos fetais, que impede sua movimentação livre. É rotina ainda procederem à raspagem dos pêlos pubianos (tricotomia) e a uma lavagem intestinal (enema) na hora da internação, para "preparar a mulher" e deixá-la "limpinha", e chamarem-na de "mãezinha", ao invés de chamá-la pelo nome, durante toda sua estadia no hospital. Todos esses procedimentos não têm nenhum embasamento científico para serem usados de rotina nos hospitais, e têm um efeito psicológico muito claro: a humiliação e infantilização da mulher, que é tratada como uma criancinha tola, senão uma doente (física e mental) duante todo o parto. O efeito imediato desse tratamento é o desempoderamento da mulher.


Na hora do expulsivo, que é quando o bebê realmente nasce, as intervenções ficam mais agressivas, e, geralmente, o tratamento à paciente tende a acompanhar o movimento. Nessa hora, muito do que sai da boca da equipe médica são ordens ou recriminações: "Faz força!", "Assim não!", "Tá fazendo errado!", "Não grita!", "Achou que ia ser fácil? Vamos lá! Força!". É comum que um enfermeiro, de preferência grande e forte, faça força sobre a barriga da mulher (Manobra de Kristeller), reforçando a idéia de que, sem ajuda, ela é incapaz de parir. E então, vem a famosa intervenção, temida por 100% das mulheres, primíparas ou não, a episiotomia. 

episiotomia é um corte feito na vagina da mulher bem na hora em que a cabeça do bebê está passando. Durante muitos anos acreditou-se que a episiotomia era importantíssima, pois cicatrizava mais facilmente do que as lacerações naturais, que acontecem muitas vezes durante o parto. Acreditava-se também que ela prevenia problemas de "bexiga caída" após o parto, e ela foi, por muitos anos, chamada de "ponto do marido", pois os médicos prometíam deixar a vagina "apertadinha de novo" ao costurá-la. Hoje, graças às informações baseadas em evidências, sabe-se que não é o caso, que as lacerações naturais cicatrizam muito melhor do que a episiotomia, e que esta só deveria ser praticada em 10 a 15% dos partos, quando existem indicações médicas reais para isso.  


Não existem justificativas válidas para explicar porquê quase 100% das mulheres passam por este procedimento de forma rotineira nas maternidades, a menos que se entenda o parto como um rito de passagem, e um dos rituais adotados pelos médicos neste rito é a mutilação da vagina, símbolo ocidental da maternidade (pois é, somos doidos mesmo!).

Os Cuidados com o Bebê

E é nesse ambiente de loucura e violência, em meio a um ritual bárbaro cercado por tecnologia de ponta, que chegam ao mundo nossos filhotes. E são imediatamente levados para uma "inspecção de rotina", que inclui: aspiração com sonda em todas as suas vias (nariz, boca, garganta, e muitas vezes ânus também), ser esfregado com panos rígidos e depois lavado com água (muitas vezes fria) e sabão, receber as primeiras injeções e exames médicos, e, por fim, receber umas gotinhas de nitrato de prata nos olhos (e nas meninas, também na vulva), que causam uma sensação imediata de ardor e geram, em mais de 50% dos bebês, uma conjuntivite crônica, que afeta sua visão, e sua capacidade de abrir os olhos, durante até quatro dias após o parto. 


Depois desse recebimento hostil, o bebê é colocado em um bercinho aquecido, onde fica "em observação", sozinho, gritando por sua mãe, durante algumas horas (às vezes mais de 8 horas). Somente depois de passar por tudo isso é que mãe e filho serão reunidos, e poderão então lamber suas feridas e começar uma nova vida juntos, tentando esquecer o evento traumático que acabam de vivenciar. 

Verbose: Quando a Palavra é um Problema 

Verbose é a patologia da palavra ou, em outros termos, a iatrogenia causada pela palavra. A iatrogenia ocorre quando aquilo que deveria ser fonte de cuidado e cura vira fonte de mal-estar e patologia, ou seja, quando a intervenção acaba fazendo mais mal do que bem. Até aqui, vimos como o parto, no modelo hospitalar brasileiro dominante hoje, está saturado de iatrogenias, porém, a iatrogenia da palavra adquire, no contexto do parto, um sentido especial, e vale a pena ressaltá-lo.

O parto depende de um delicado equilíbrio hormonal para evoluir corretamente. O hormônio principal desse "coquetel de hormônios" do parto é a ocitocina endógena, um hormônio que é responsável também pela sensação de orgasmo, e depende de um determinado estado mental para ser liberado com eficácia. Este estado mental é de calma e descontração, relaxamento e tranquilidade. É um estado mental que propicia a entrega do corpo e é comparável ao estado mental da pessoa durante uma relação sexual. Biologicamente, o que acontece é um "desligamento" do neocórtex, a parte mais "racional" do cérebro, deixando a parte mais primitiva do cérebro em total controle do que está acontecendo: é um transe, e no parto, é chamado de Partolândia.

Assim como durante a relação sexual, qualquer palavra mal colocada durante o trabalho de parto pode "quebrar o clima" completamente, fazendo o processo "travar". Por isso é muito importante ficar atentos ao que se diz em presença de uma mulher em trabalho de parto.




2 comentários:

  1. Infelizmente, é isso que acontece. É lastimante. Até hoje sinto muita raiva do que aconteceu, porque a experiência que tive não foi a de um parto, e sim a de um exorcismo! Tudo isso que foi citado aí, eu passei e ouvi nas horas em que estive na sala de parto, entre outras coisas.

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  2. No dia 25/11/2012, foi lançado o vídeo VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA - A voz das brasileiras: http://www.youtube.com/watch?v=eg0uvonF25M.
    Vale a pena assistir. Vai abrir os olhos de muita gente!

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