Voltamos, como prometido e após retumbante sucesso, com esta série intrigante de artigos sobre o parto! Uma vez mais, com seu estilo claro e irreverente, a futura psicóloga e doula em treinamento Adéle Valarini despeja informações assustadoras, e tece argumentos formidáveis, sobre um dos processos bioculturais mais fetichizados das sociedades ocidentais: o parto.
Como fã declarado que me tornei, brado com todas as letras: LEIAM!
Gostaria de notar que este ensaio não deveria ser unicamente do interesse do nosso público feminino. Nossos públicos masculino e queer tem muito a aprender e refletir com suas idéias. Geração peridural: menos narcose!
Sem mais delongas:
Para aqueles que escolheram a pílula vermelha.
A Geração Peridural
A anestesia durante o parto foi usada pela primeira vez pela rainha Vitória,
no século XIX. Obviamente, a anestesia usada por ela foi top de linha para a
época (anestesia geral com clorofórmio), e não estava disponível para qualquer
um(a). No sir! O uso da anestesia no parto só começou a se generalizar
no início do século XX, sobretudo entre a primeira e a segunda guerras
mundiais: as mulheres, e com mais ênfase as mulheres do movimento feminista,
exigíam o direito de parir sem dor, e de fazer uso de todas as tecnologias
existentes que permitissem isso. E ai dos homens que tentassem impedí-las!
Imagens de mulheres em trabalho de parto, em hospitais americanos dos
anos 20, 30 e 40 mostram mulheres sedadas no chamado Twilight Sleep:
eram administradas catecolaminas e anticonvulsivos, um coquetel de drogas que
"apagava" a consciência da mulher, deixando-a em estado animal,
completamente descontrolada, e sem nenhuma memória do evento. Geralmente, as
mulheres eram amarradas, imobilizadas e até mesmo vendadas, para controlar seus
impulsos violentos e impedir que se machucassem ou atacassem alguém. Dessa
época datam os relatos de mulheres insultando os médicos, tentando arrancar-lhes
os olhos com as mãos, arranhá-los e mordê-los.
Twilight Sleep em hospitais americanos
- anos 20 e 30
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Os familiares da mulher, que permaneciam do lado de fora da sala de
parto, sequer imaginavam que lá dentro estava acontecendo um bad-trip
gigantesco, e acreditavam que era o parto que fazia isso com a mulher.
Aquela imagem caricata, do pai fumando, desesperado, um charuto atrás do outro,
na sala de espera, ouvindo os gritos de sua mulher através da porta, e rezando
para aquilo tudo acabar logo, parece dolorosamente próxima da realidade da
época, que se estendeu até o final dos anos cinquenta.
As crianças nascidas dessa maneira cresceram para formar as gerações dos
anos sessenta e setenta, gerações conhecidas por sua incessante busca por estados
alterados de consciência, e por um profundo mal-estar e insatisfação com a
realidade.
Nos anos 70, graças ao movimento hippie, uma leva de mulheres da
nova geração começou a revindicar seu parto de volta. Não mais queriam a
ausência de dor e de memória, não mais queriam passar por manipulações sem
serem consultadas: queriam viver a experiência do parto plenamente,
conscientemente. Não queriam perder seu parto.
As parteiras tradicionais, que lutavam para
sobreviver em uma cultura que havia migrado para o ambiente hospitalar,
lentamente voltaram a cobrar forças, e o movimento pelo parto domiciliar se iniciou, para o grande
desconforto da classe médica, motivado pela insatisfação das mulheres com o
atendimento médico oferecido nos hospitais até então. Fazia-se mister o
lançamento de alguma estratégia que bloqueasse esse movimento de diáspora
hospitalar e trouxesse as mulheres de volta.
O desenvolvimento do ultrassom e da anestesia peridural, no início
dos anos oitenta, foi essa tentativa. E deu muito certo! Com as novas
possibilidades que a tecnologia oferecia, como ver o bebê ainda dentro da
barriga, e também estar consciente na hora do parto sem sentir dor alguma,
aliadas à promessa de segurança em caso de emergência, as mulheres voltaram
voando para o hospital!
E então, os anos oitenta foram o marco inicial do desenvolvimento da geração
peridural, essa turminha que nasceu nas mãos da modernidade
tecnológica, com mamãe acordada, sorridente e insensível às sensações do
trabalho de trazer seu filho ao mundo.
Assim como o ultrassom, a peridural foi publicisada como o must-have
do parto. Em pouco tempo, alastrou-se a idéia de que era impossível aguentar um
parto sem peridural, só mesmo uma masoquista para tentar, e foram, mais uma
vez, omitidos os efeitos colaterais que essa intervenção acarretava.
Sim, porque a peridural é uma intervenção médica sobre um processo
fisiológico, e não é das menores! Tudo se inicia com uma picadinha, só que
é uma picadinha dentro da sua coluna, ou
seja, dentro do seu sistema nervoso periférico. Só aí, já encontramos diversos
riscos, entre eles aquele risco bobinho, banal, a tal da falha humana... Se seu
médico não tiver competência para introduzir aquela agulha exatamente ali, no
lugar certinho, ou se você se mexer um pouquinho durante o processo, você corre
o risco de ficar paralizada. E acontece! Claro que a paralisia geral é rara,
mas existem pessoas que ficam sentindo formigamentos e dores, que ficam com
metade do corpo paralizado, ou às vezes só uma perna, e isso por até meses após
o parto!
Uma vez aplicada a anestesia peridural, a mulher vai perdendo as
sensações do peito para baixo. Dependendo da quantidade de medicamento
injetado, ela perde totalmente o controle dos músculos das pernas e da barriga,
sendo assim impossível ajudar seu bebê a nascer com movimentos e com a ajuda da
gravidade e da força muscular. A mulher não consegue mais parir. Quem tem de ir
lá e tirar o bebê é o médico. A anestesia peridural aumenta a
necessidade de fórceps e vácuo extrator no parto. Ambos são instrumentos de
extração do feto, ou seja, servem para "arrancar o bebê do abrigo
materno" (isso é uma tradução direta de uma expressão em francês). O uso
desses instrumentos exige que se façam também outras intervenções, como a
episiotomia (corte na vagina para alargar o canal do parto).
Não raro, a peridural é aplicada e, poucos minutos depois, o trabalho de
parto começa a falhar. Os movimentos do útero perdem sua coordenação, devido ao
efeito da peridural, e se transformam em contrações ineficazes. Daí a
necessidade de se controlar e aumentar artificialmente essas contrações. A ocitocina sintética é usada com muita
frequencia em mulheres que fizeram uso de peridural.
O bebê também recebe a anestesia peridural: a placenta não é capaz de bloquear a
droga, como muitos acreditam. O bebê fica "grogue", perde a força e a
coordenação dos músculos, assim como sua mãe. Porém, como seu fígado ainda não
está maduro, seu organismo não consegue processar a toxina e liberá-la tão
facilmente como o organismo adulto: enquanto a mamãe recupera da anestesia
em 3 horas, em média, o bebê pode continuar bem anestesiado por 8 horas ou mais.
Isso interfere bastante no trabalho de parto pois, para quem não sabia, a
maior parte do trabalho de parto, quem faz é o bebê! Ele
se estica, gira para lá e para cá, apóia a cabeça no colo do útero e empurra
com força. É isso que faz a dilatação acontecer. As contrações servem para
ajudar ele a se mexer lá dentro e empurrar. Quando a mulher faz força, ela
também está ajudando o bebê a empurrar com a cabeça.
Quando o bebê está grogue, ele tampouco consegue fazer o seu
devidamente. Não importa quanta ocitocina sintética se coloque na veia da
mamãe, ou quão intensas sejam as contrações, ele não consegue fazer o movimento de rotação necessário para passar pela pelve de
sua mãe. E, quanto mais tempo ele fica sendo espremido sem
conseguir sair de lá, mais dificil fica a sua oxigenação, afinal tudo se esmaga
lá dentro durante as contrações, inclusive o cordão umbilical. Bebês que recebem o combo
peridural + ocitocina sintética têm mais chances de entrar em sofrimento fetal,
que é indicação para uma cesariana de emergência.
Uma vez terminado o parto, o bebê nascido sob efeito de peridural tem
mais um desafio. Seu reflexo natural de se arrastar até o seio de sua mãe e
sugar, conhecido como breastcrawl, não pode ser satisfeito,
afinal, ele está sem controle de seu corpo e só vai "acordar" mesmo
daqui a várias horas. A mãe pode colocá-lo no peito, enfiar o mamilo lá no
fundo da goela dele, mas ele não vai saber o que fazer, pois vai estar sobrecarregado
de estímulos, e sem poder agir. A peridural atrapalha a amamentação, muitas
vezes impedindo que o bebê se alimente na primeira hora após o parto, e em
alguns casos, comprometendo para sempre a amamentação.
O parto com peridural é um parto onde mãe e bebê permanecem passivos,
anestesiados (numb). Em alguns casos, eles se esforçam, até
muitíssimo, para fazer o parto acontecer, porém nem sempre são capazes, pela
falta de controle de seus corpos, causada pela peridural. A ação
interveniente do médico, para guiar e puxar o bebê de um lado, enquanto
outro médico aperta a barriga da mãe para simular a força que ela não consegue
fazer do outro, é essencial para o bom andamento do parto com anestesia
peridural. Depois disso, o bebê tampouco consegue ser ativo para alimentar-se,
sendo muitas vezes alimentado quase à força na maternidade (por sonda,
mamadeira ou copinho).
Essa apatía anestesiada (numbness), essa sensação de
incapacidade de fazer as coisas acontecerem por si mesmo, vira o primeiro imprint
daquele ser humano, sua marca psíquica primordial, fundamental, aquilo que
ele procurará inconscientemente reproduzir ao longo de toda sua existência.
Vivemos hoje uma época em que as drogas mais usadas são aquelas que
produzem um efeito similar ao da anestesia peridural: uma progressiva falta de
controle muscular, associada a uma sonolência (numbness) mental. Álcool,
maconha, derivados do ópio, assim como drogas farmacológicas de popularidade
mais recente, como o prozac e sua família, produzem no indivíduo um efeito de
letargia, como estar "dentro de uma nuvem de algodão", que se
assemelha ao efeito da peridural no organismo do bebê.
É possível perguntar-nos se, realmente, um não tem nada a ver com o
outro, ou se estamos criando, de maneira serial, gerações de pessoas
programadas para procurar a satisfação em um estado artificial de letargia
narcótica, assim como descreveu Huxley em seu Admirável Mundo Novo.
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