sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Boletim CFP - 13 razões para defender uma política para usuários de crack (seguido por comentários do autor do blog)

1. Defendemos o Sistema Único de Saúde (SUS) – um dos maiores patrimônios nacionais, construído coletivamente para cuidar da saúde da população brasileira. Defendemos a aprovação da Emenda Constitucional nº 29 e a possibilidade de garantir e ampliar financiamento para consolidar suas ações, inclusive para a política de crack, álcool e outras drogas, assegurando seu caráter eminentemente público, em oposição a todas as formas de privatização da saúde.
2. Defender os princípios e diretrizes do SUS, principalmente o princípio da PARTICIPAÇÃO, que garante o direito do usuário de ser esclarecido sobre a sua saúde, de intervir em seu próprio tratamento e de ser considerado em suas necessidades, em função de sua subjetividade, crenças, valores, contexto e preferências.
3. Defender a continuidade e o avanço do processo de Reforma Psiquiátrica Antimanicomial em curso no Brasil – regulamentada na Lei nº 10.216/2001, que criou os serviços de atenção psicossocial de caráter substitutivo ao modelo asilar – para o cuidado de pessoas com sofrimento mental e problemas no uso de álcool e outras drogas.
4. Considerar que o Estado é laico e democrático e, por isso, não deverá, a pretexto de tratamento, impor crença religiosa a nenhum de seus cidadãos, mesmo quando estes fizerem uso problemático de álcool ou outras drogas. Da mesma forma, compete ao Estado respeitar e promover a cidadania destes usuários, recusando todas as propostas que violem seus direitos, como a internação compulsória e restrição da liberdade como método de tratamento.
5. Superar o isolamento em instituições totais, tais como hospitais psiquiátricos ou comunidades terapêuticas – que geram mais dor, sofrimento, violação dos direitos humanos –, por uma rede de serviços substitutivos como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Leitos em Hospitais Gerais, Casas de Acolhimento Transitório, Consultórios de Rua e outras invenções que se fizerem necessárias para garantir o cuidado em liberdade.
6. Reconhecer que as cenas públicas de uso de drogas, as chamadas cracolândias, que tanto incomodam a população em geral, são também efeitos da negligência pública e da hipocrisia social. A transformação desta situação impõe a criação de políticas públicas que incluam os usuários e a população local, através da implantação de projetos de moradia social, geração de renda, qualificação do espaço urbano, educação, lazer, esporte, cultura, etc.
7. O cuidado em liberdade, dentro do SUS, dos usuários de crack, álcool e outras drogas já é realidade em nosso país. São Bernardo do Campo (SP) e Recife (PE) são exemplos do êxito desta política, cujos investimentos exclusivamente voltados para a rede pública propiciaram a invenção de uma rede diversificada de serviços substitutivos, que asseguram cidadania. A sustentação radical desta política permite a ambos municípios prescindirem da inclusão de comunidades terapêuticas e de hospitais psiquiátricos como lócus de tratamento.
8. Quem usa drogas é vizinho, pai, mãe, filho, filha, irmão, irmã, amigo, amiga, parente de alguém, meu ou seu. Portanto, é preciso superar a ideia de que o usuário de drogas é perigoso, perdido, irrecuperável ou um monstro. Tais idéias provocam uma urgência de respostas mágicas, levam a sociedade a demandar medidas políticas sem a prévia reflexão necessária, justificando e legitimando a violência contra estes novos párias sociais.
9. A humanidade sempre usou drogas em cerimônias, festas, ritos, passagens e em contextos limitados. Nossa sociedade precisa se indagar sobre o significado do consumo que o mundo contemporâneo experimenta e tanto valoriza, buscando entender o uso abusivo de drogas nos dias de hoje e as respostas que tem dado ao mesmo.
10. As sociedades convivem com muitas drogas, lícitas ou ilícitas. As pessoas que usam drogas de forma prejudicial precisam de ajuda, apoio, respeito e de redes públicas de atenção que garantam sua cidadania e liberdade. Para tal, as ações de redução de danos, que responsabilizam o cidadão por suas escolhas e estabelecem laços de solidariedade, devem ser orientadoras do cuidado, sempre articuladas com as demais políticas públicas.
11. A leitura do fenômeno do uso abusivo de drogas, em particular, do consumo de crack, como uma epidemia, além de grave equívoco de interpretação dos dados epidemiológicos que não demonstram isto, provoca uma reação social que instaura o medo e autoriza a violência e a arbitrariedade, levando à justificação de medidas autoritárias, coercitivas e higienistas.
12. Comunidades terapêuticas não são dispositivos de saúde pública. São a versão moderna dos antigos manicômios, seja pela função social a elas endereçada, quanto pelas condições de uma suposta assistência ofertada. Elas reintroduzem o isolamento das instituições totais, propondo a internação e permanência involuntárias, centram suas ações na temática religiosa, frequentemente desrespeitando tanto a liberdade de crença quanto o direito de ir e vir dos cidadãos. Portanto, rompem com a estrutura de rede que vem sendo construída pelo SUS, não havendo qualquer justificativa técnica para seu financiamento público.
13. Os direitos humanos, os princípios da saúde pública e as deliberações das Conferências Nacionais de Saúde e de Saúde Mental devem orientar a aplicação e os investimentos públicos na criação das redes e serviços de atenção a usuários de crack, álcool e outras drogas. Qualquer política que proponha agregar outros serviços com orientação distinta da adotada pela Reforma Psiquiátrica e pelo SUS, estará tentando conciliar o inconciliável e deste modo, camuflando diferenças em nome de outros motivos ou interesses e produzindo um claro desrespeito à política e à sociedade.


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O conteúdo do boletim, suas treze propostas, me parece de uma extraordinária lucidez. Bem redigido e claramente estruturado, deveria ser levado em conta como o núcleo, e ponto de partida, para uma série de reflexões fundamentais acerca do não tão recente fenômeno do abuso de crack. Gostaria de pensar seu conteúdo após fazer uma breve arqueologia do surgimento e estabelecimento da droga no cenário internacional e doméstico.

Gostaria de começar ao lembrar que o crack tem ceifado vidas desde meados da década de oitenta, portanto não sendo uma droga que tomou o mundo “de surpresa”. Estamos lidando com esse narcótico a quase trinta anos. Com imensa tristeza poderia dizer que o crack veio ao mundo com a minha geração.

Saído dos bairros empobrecidos de Miami, Los Angeles e Nova Iorque onde populações urbanas em situação de subalteridade psíquica e socioeconômica recorreram à droga devido ao seu baixo preço e abundância (é fácil fabricá-lo com poucos insumos tecnológicos e capital, além de ser facilmente armazenado e vendido), o crack está ligado diretamente com a política econômica, e seus efeitos, do governo Reagan.

Reaganomics: Durante seu mandato (1981-1989) o quadragésimo presidente dos Estados Unidos da América implementou uma série de políticas econômicas, de caráter liberal clássico (filosofia do laissez-faire) que além de impor cortes tributários radicais, também favoreceu drasticamente as classes mais abastadas norte americanas esperando que seu lucro viesse, em última instância, a ser repassado às classes menos economicamente afluentes. Somado a essas medidas gerais outras específicas estabeleceram as condições para a situação de degradação social e subalteridade que criou o cenário ideal para o uso de uma droga de extraordinário efeito alienante e falsamente empoderante: o congelamento de salários mínimos e cortes orçamentários de assistência a governos locais, projetos habitacionais públicos, programas educacionais, programas de combate a pobreza, serviços públicos de saúde (Medicare) e Seguro Social. Não é de se surpreender, afinal de contas a população que precisa(va) desses investimentos e apoio do governo era - e é - constituída em sua maioria por negros, hispânicos e imigrantes vários, grupos étnicos e sociais historicamente excluídos do processo democrático e social norte americano (para mais informações sobre o assunto ver o Movimento de Direitos Civis - Civil Rights Movement­ -). Coincidentemente, na mesma década ocorre a consolidação das gangues, oriundas das periferias desprestigiadas, como unidade de crime organizado que controla o narcotráfico nos Estados Unidos.

Vejo no cenário descrito acima dois movimentos paralelos simultâneos: a) o abandono pelo governo de uma população em estado de precariedade  para o cumprimento de uma doutrina econômica que b) proporciona uma situação de anomia onde a ausência explícita do Estado fomenta um cenário de degradação social cuja externalidade é uma propícia limpeza étnica de grupos sociais indesejáveis e uma ação policial e jurídica repressora violenta pelo mesmo Estado que os abandonou (para mais informações ver o envolvimento, fartamente documentado, da CIA com os Contras na Nicarágua e seu papel no fornecimento de cocaína, matéria prima do crack, para as gangues norte americanas que o fabricam e distribuem). Evidências dessa última afirmação são: a) em 1997, pouco mais de dez anos após o reconhecimento público da “epidemia” de crack pelo jornal The New York Times, a Comissão de Sentenças norte americana relatou que quase 90% dos infratores condenados num tribunal federal por distribuição de crack são afro-americanos enquanto a maior parte dos usuários são brancos (fonte: US Sentencing Commission, Special Report to the Congress: Cocaine and Federal Sentencing Policy [Washington, DC: US Sentencing Commission, April 1997], p. 8); e b) em 1986, antes do estabelecimento de penas mínimas para crimes envolvendo crack, a pena mínima para crimes envolvendo drogas era 11% mais alta para negros do que brancos. Quatro anos após a implementação de penas mais duras para crimes envolvendo drogas, a pena média estabelecida por lei federal é 49% mais alta para negros (fonte: Meierhoefer, Barbara S., The General Effect of Mandatory Minimum Prison Terms: A Longitudinal Study of Federal Sentences Imposed [Washington DC: Federal Judicial Center, 1992], p. 20).

Gostaria que a história - particularidades sociais, econômicas e culturais à parte - não se repetisse quase trinta anos depois neste meu país.

No Brasil, desde a década de noventa, o eixo crack - abandono do Estado - subalteridade tornou-se uma heurística proferida, como uma fórmula mágica, pela mídia e determinados círculos políticos. A associação do uso do crack a populações socialmente desprestigiadas encravou-se no imaginário da classe média brasileira graças a uma extraordinária e sistemática campanha midiática. Acaso estaremos retraçando o caminho de nossos vizinhos do atlântico norte? Cometendo alguns dos mesmos erros que cometeram?

As cracolândias não são territórios urbanos isolados da realidade total da urbe. Muito pelo contrario, são os territórios que a negligência pública e a hipocrisia social  (in)diretamente definiu como sendo o reduto dos refugos, campo de extermínio (in)voluntário daqueles que foram desprestigiados pela sua raça, história e status quo socioeconômico. Temos que nos lembrar que os territórios não são espaços estanques, e devido a sua porosidade o que vemos é um aumento considerável de usuários de classe média, usuários esses que volta e meia são explorados pelos meios de comunicação no que, não consigo vê-lo de outra maneira, parece ser uma estratégia de choque dos “bons costumes” da classe média, estratégia temperada por sensacionalismo e uma política do medo. Um programa televisivo de grande audiência que se limita a mostrar o ordalho infernal de uma família com um usuário de crack, a ação repressiva do Estado a esse usuário e no final do programa não educa a audiência acerca das possibilidades de tratamento do usuário é um instrumento discursivo de alienação e embrutecimento de seus telespectadores. Como diz o boletim, esses usuários podem ser nossos familiares, amigos ou pessoas próximas. E mesmo que não se encaixem em nenhuma das categorias anteriores, são cidadãos que gozam dos mesmos direitos que nós.

Não façamos como os norte americanos ao debilitar o alcance de nosso Estado para enriquecer uma elite sociopoliticamente irresponsável que busca representar somente a si mesma e seus interesses. Assim sendo o SUS deve ser defendido, aprimorado e ampliado de fato, a reforma psiquiátrica tem que ser avançada e difundida como fato social e político, concreto, de um Estado democrático, laico, de direito. Não será através de políticas públicas repressoras, ações violentas e autoritárias por parte do Estado e outras instituições não ou mal credenciadas, que um fenômeno social dessa magnitude será resolvido. Basta ver como o orçamento exorbitante, e muitas vezes terrivelmente mal alocado, para a contenção e combate a produção, venda e consumo de drogas tem tido efetividade dúbia.  Assim sendo temos que desfetichizar o uso de drogas ao compreender de maneira profunda, histórica e subjetivamente contextualizada, como isso tem side feito pelas sociedades humanas passadas e presentes. Cabe à educação, à academia, aos elaboradores de políticas públicas buscar um espaço de elucidação e ressignificação desse uso e suas consequências. A escola seria um espaço fundamental para tal fim.

Finalmente acho que este boletim do CRP não deveria ficar circunscrito ao nosso pequeno núcleo profissional... Publiquem-no onde for possível! Como psicólogos, amantes exasperados do logos, temos sempre que ter em mente que as palavras são discurso, discurso é agenciamento, agenciamento é poder e a física do poder é a política. É nosso dever agir, somos animais políticos... Não sou eu quem diz isso, foi Aristoteles... Que anda meio desprestigiado entre as minhas referências depois que o exorcisei junto com o fetiche helenista oriundo da nossa herança eurocêntrica colonial... Mas isso é outra história.

Muito obrigado!

4 comentários:

  1. Belo texto, Pedro! Vou tentar me inspirar para escrever algo tb... Tatiana.

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  2. Muito obrigado, Tati! Adoraria ter um texto seu aqui, afinal de contas você está na frente de batalha e tem um pensamento crítico que muito aprecio. Beijo!

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  3. Querido Pedro, muito boa sua reflexão sobre o boletim. Parabéns pelo blog. Bjs. Valéria

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  4. Muito obrigado, queridíssima professora! Bjs.

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