1.
Defendemos o Sistema Único de Saúde (SUS) – um
dos maiores patrimônios nacionais, construído coletivamente para cuidar da
saúde da população brasileira. Defendemos a aprovação da Emenda Constitucional
nº 29 e a possibilidade de garantir e ampliar financiamento para consolidar suas
ações, inclusive para a política de crack, álcool e outras drogas, assegurando
seu caráter eminentemente público, em oposição a todas as formas de
privatização da saúde.
2. Defender os princípios e diretrizes do SUS,
principalmente o princípio da PARTICIPAÇÃO, que garante o direito do usuário de
ser esclarecido sobre a sua saúde, de intervir em seu próprio tratamento e de
ser considerado em suas necessidades, em função de sua subjetividade, crenças,
valores, contexto e preferências.
3. Defender a continuidade e o avanço do processo de
Reforma Psiquiátrica Antimanicomial em curso no Brasil – regulamentada na Lei
nº 10.216/2001, que criou os serviços de atenção psicossocial de caráter
substitutivo ao modelo asilar – para o cuidado de pessoas com sofrimento mental
e problemas no uso de álcool e outras drogas.
4. Considerar que o Estado é laico e democrático e, por
isso, não deverá, a pretexto de tratamento, impor crença religiosa a nenhum de
seus cidadãos, mesmo quando estes fizerem uso problemático de álcool ou outras
drogas. Da mesma forma, compete ao Estado respeitar e promover a cidadania
destes usuários, recusando todas as propostas que violem seus direitos, como a
internação compulsória e restrição da liberdade como método de tratamento.
5. Superar o isolamento em instituições totais, tais
como hospitais psiquiátricos ou comunidades terapêuticas – que geram mais dor,
sofrimento, violação dos direitos humanos –, por uma rede de serviços
substitutivos como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Leitos em Hospitais
Gerais, Casas de Acolhimento Transitório, Consultórios de Rua e outras
invenções que se fizerem necessárias para garantir o cuidado em liberdade.
6. Reconhecer que as cenas públicas de uso de drogas, as
chamadas cracolândias, que tanto incomodam a população em geral, são também
efeitos da negligência pública e da hipocrisia social. A transformação desta
situação impõe a criação de políticas públicas que incluam os usuários e a
população local, através da implantação de projetos de moradia social, geração
de renda, qualificação do espaço urbano, educação, lazer, esporte, cultura,
etc.
7. O cuidado em liberdade, dentro do SUS, dos usuários
de crack, álcool e outras drogas já é realidade em nosso país. São Bernardo do
Campo (SP) e Recife (PE) são exemplos do êxito desta política, cujos
investimentos exclusivamente voltados para a rede pública propiciaram a
invenção de uma rede diversificada de serviços substitutivos, que asseguram
cidadania. A sustentação radical desta política permite a ambos municípios
prescindirem da inclusão de comunidades terapêuticas e de hospitais
psiquiátricos como lócus de tratamento.
8. Quem usa drogas é vizinho, pai, mãe, filho, filha,
irmão, irmã, amigo, amiga, parente de alguém, meu ou seu. Portanto, é preciso
superar a ideia de que o usuário de drogas é perigoso, perdido, irrecuperável
ou um monstro. Tais idéias provocam uma urgência de respostas mágicas, levam a
sociedade a demandar medidas políticas sem a prévia reflexão necessária,
justificando e legitimando a violência contra estes novos párias sociais.
9.
A humanidade sempre usou drogas em cerimônias,
festas, ritos, passagens e em contextos limitados. Nossa sociedade precisa se
indagar sobre o significado do consumo que o mundo contemporâneo experimenta e
tanto valoriza, buscando entender o uso abusivo de drogas nos dias de hoje e as
respostas que tem dado ao mesmo.
10. As sociedades convivem com muitas drogas, lícitas ou
ilícitas. As pessoas que usam drogas de forma prejudicial precisam de ajuda,
apoio, respeito e de redes públicas de atenção que garantam sua cidadania e
liberdade. Para tal, as ações de redução de danos, que responsabilizam o
cidadão por suas escolhas e estabelecem laços de solidariedade, devem ser
orientadoras do cuidado, sempre articuladas com as demais políticas públicas.
11. A leitura do fenômeno do uso abusivo de drogas, em
particular, do consumo de crack, como uma epidemia, além de grave equívoco de
interpretação dos dados epidemiológicos que não demonstram isto, provoca uma
reação social que instaura o medo e autoriza a violência e a arbitrariedade,
levando à justificação de medidas autoritárias, coercitivas e higienistas.
12. Comunidades terapêuticas não são dispositivos de
saúde pública. São a versão moderna dos antigos manicômios, seja pela função
social a elas endereçada, quanto pelas condições de uma suposta assistência
ofertada. Elas reintroduzem o isolamento das instituições totais, propondo a
internação e permanência involuntárias, centram suas ações na temática
religiosa, frequentemente desrespeitando tanto a liberdade de crença quanto o
direito de ir e vir dos cidadãos. Portanto, rompem com a estrutura de rede que
vem sendo construída pelo SUS, não havendo qualquer justificativa técnica para
seu financiamento público.
13. Os direitos humanos, os princípios da saúde pública e
as deliberações das Conferências Nacionais de Saúde e de Saúde Mental devem
orientar a aplicação e os investimentos públicos na criação das redes e
serviços de atenção a usuários de crack, álcool e outras drogas. Qualquer
política que proponha agregar outros serviços com orientação distinta da
adotada pela Reforma Psiquiátrica e pelo SUS, estará tentando conciliar o
inconciliável e deste modo, camuflando diferenças em nome de outros motivos ou
interesses e produzindo um claro desrespeito à política e à sociedade.
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O conteúdo do boletim, suas
treze propostas, me parece de uma extraordinária lucidez. Bem redigido e
claramente estruturado, deveria ser levado em conta como o núcleo, e ponto de
partida, para uma série de reflexões fundamentais acerca do não tão recente fenômeno
do abuso de crack. Gostaria de pensar seu conteúdo após fazer uma breve
arqueologia do surgimento e estabelecimento da droga no cenário internacional e
doméstico.
Gostaria de começar ao lembrar
que o crack tem ceifado vidas desde meados da década de oitenta, portanto não
sendo uma droga que tomou o mundo “de surpresa”. Estamos lidando com esse
narcótico a quase trinta anos. Com imensa tristeza poderia dizer que o crack
veio ao mundo com a minha geração.
Saído dos bairros
empobrecidos de Miami, Los Angeles e Nova Iorque onde populações urbanas em
situação de subalteridade psíquica e socioeconômica recorreram à droga devido
ao seu baixo preço e abundância (é fácil fabricá-lo com poucos insumos
tecnológicos e capital, além de ser facilmente armazenado e vendido), o crack
está ligado diretamente com a política econômica, e seus efeitos, do governo
Reagan.
Reaganomics: Durante seu mandato
(1981-1989) o quadragésimo presidente dos Estados Unidos da América implementou
uma série de políticas econômicas, de caráter liberal clássico (filosofia do laissez-faire) que além de impor cortes tributários radicais, também favoreceu
drasticamente as classes mais abastadas norte americanas esperando que seu
lucro viesse, em última instância, a ser repassado às classes menos
economicamente afluentes. Somado a essas medidas gerais outras específicas
estabeleceram as condições para a situação de degradação social e subalteridade
que criou o cenário ideal para o uso de uma droga de extraordinário efeito
alienante e falsamente empoderante: o congelamento de salários mínimos e cortes
orçamentários de assistência a governos locais, projetos habitacionais
públicos, programas educacionais, programas de combate a pobreza, serviços
públicos de saúde (Medicare) e Seguro Social. Não é de se surpreender, afinal
de contas a população que precisa(va) desses investimentos e apoio do governo
era - e é - constituída em sua maioria por negros, hispânicos e imigrantes
vários, grupos étnicos e sociais historicamente excluídos do processo democrático
e social norte americano (para mais informações sobre o assunto ver o Movimento
de Direitos Civis - Civil Rights Movement
-). Coincidentemente, na mesma década ocorre a consolidação das gangues,
oriundas das periferias desprestigiadas, como unidade de crime organizado que
controla o narcotráfico nos Estados Unidos.
Vejo no cenário descrito
acima dois movimentos paralelos simultâneos: a) o abandono pelo governo de uma
população em estado de precariedade
para o cumprimento de uma doutrina econômica que b) proporciona uma
situação de anomia onde a ausência explícita do Estado fomenta um cenário de
degradação social cuja externalidade é uma propícia limpeza étnica de grupos
sociais indesejáveis e uma ação policial e jurídica repressora violenta pelo mesmo
Estado que os abandonou (para mais informações ver o envolvimento, fartamente
documentado, da CIA com os Contras na Nicarágua e seu papel no fornecimento de
cocaína, matéria prima do crack, para as gangues norte americanas que o
fabricam e distribuem). Evidências dessa última afirmação são: a) em 1997,
pouco mais de dez anos após o reconhecimento público da “epidemia” de crack
pelo jornal The New York Times, a Comissão de Sentenças norte americana relatou
que quase 90% dos infratores condenados num tribunal federal por distribuição
de crack são afro-americanos enquanto a maior parte dos usuários são brancos (fonte: US Sentencing Commission, Special Report to the Congress: Cocaine and
Federal Sentencing Policy [Washington, DC: US Sentencing Commission, April
1997], p. 8); e b) em 1986, antes do estabelecimento de penas mínimas para
crimes envolvendo crack, a pena mínima para crimes envolvendo drogas era 11%
mais alta para negros do que brancos. Quatro anos após a implementação de penas mais duras para
crimes envolvendo drogas, a pena média estabelecida por lei federal é 49% mais
alta para negros (fonte: Meierhoefer, Barbara S., The General Effect of
Mandatory Minimum Prison Terms: A Longitudinal Study of Federal Sentences
Imposed [Washington DC: Federal Judicial Center, 1992], p. 20).
Gostaria que a história -
particularidades sociais, econômicas e culturais à parte - não se repetisse
quase trinta anos depois neste meu país.
No Brasil, desde a década de
noventa, o eixo crack - abandono do Estado - subalteridade tornou-se uma
heurística proferida, como uma fórmula mágica, pela mídia e determinados
círculos políticos. A associação do uso do crack a populações socialmente
desprestigiadas encravou-se no imaginário da classe média brasileira graças a
uma extraordinária e sistemática campanha midiática. Acaso estaremos retraçando
o caminho de nossos vizinhos do atlântico norte? Cometendo alguns dos mesmos
erros que cometeram?
As cracolândias não são
territórios urbanos isolados da realidade total da urbe. Muito pelo contrario,
são os territórios que a negligência
pública e a hipocrisia social (in)diretamente definiu como sendo o
reduto dos refugos, campo de extermínio (in)voluntário daqueles que foram
desprestigiados pela sua raça, história e status
quo socioeconômico. Temos que nos lembrar que os territórios não são
espaços estanques, e devido a sua porosidade o que vemos é um aumento
considerável de usuários de classe média, usuários esses que volta e meia são
explorados pelos meios de comunicação no que, não consigo vê-lo de outra
maneira, parece ser uma estratégia de choque dos “bons costumes” da classe
média, estratégia temperada por sensacionalismo e uma política do medo. Um
programa televisivo de grande audiência que se limita a mostrar o ordalho
infernal de uma família com um usuário de crack, a ação repressiva do Estado a
esse usuário e no final do programa não educa a audiência acerca das
possibilidades de tratamento do usuário é um instrumento discursivo de
alienação e embrutecimento de seus telespectadores. Como diz o boletim, esses
usuários podem ser nossos familiares, amigos ou pessoas próximas. E mesmo que
não se encaixem em nenhuma das categorias anteriores, são cidadãos que gozam
dos mesmos direitos que nós.
Não façamos como os norte
americanos ao debilitar o alcance de nosso Estado para enriquecer uma elite sociopoliticamente
irresponsável que busca representar somente a si mesma e seus interesses. Assim
sendo o SUS deve ser defendido, aprimorado e ampliado de fato, a reforma
psiquiátrica tem que ser avançada e difundida como fato social e político,
concreto, de um Estado democrático, laico, de direito. Não será através de
políticas públicas repressoras, ações violentas e autoritárias por parte do
Estado e outras instituições não ou mal credenciadas, que um fenômeno social
dessa magnitude será resolvido. Basta ver como o orçamento exorbitante, e
muitas vezes terrivelmente mal alocado, para a contenção e combate a produção,
venda e consumo de drogas tem tido efetividade dúbia. Assim sendo temos que desfetichizar o
uso de drogas ao compreender de maneira profunda, histórica e subjetivamente
contextualizada, como isso tem side feito pelas sociedades humanas passadas e presentes.
Cabe à educação, à academia, aos elaboradores de políticas públicas buscar um
espaço de elucidação e ressignificação desse uso e suas consequências. A escola seria um espaço fundamental para tal fim.
Finalmente acho que este
boletim do CRP não deveria ficar circunscrito ao nosso pequeno núcleo
profissional... Publiquem-no onde for possível! Como psicólogos, amantes exasperados do logos, temos sempre que ter em mente que as palavras são discurso, discurso é agenciamento, agenciamento é poder e a física do poder é a política. É nosso dever agir, somos animais políticos... Não sou eu quem diz isso, foi Aristoteles... Que anda meio desprestigiado entre as minhas referências depois que o exorcisei junto com o fetiche helenista oriundo da nossa herança eurocêntrica colonial... Mas isso é outra história.
Muito obrigado!
Belo texto, Pedro! Vou tentar me inspirar para escrever algo tb... Tatiana.
ResponderExcluirMuito obrigado, Tati! Adoraria ter um texto seu aqui, afinal de contas você está na frente de batalha e tem um pensamento crítico que muito aprecio. Beijo!
ResponderExcluirQuerido Pedro, muito boa sua reflexão sobre o boletim. Parabéns pelo blog. Bjs. Valéria
ResponderExcluirMuito obrigado, queridíssima professora! Bjs.
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