terça-feira, 25 de outubro de 2011

Terapias do Armário: Onde Eros encontra Jeová

As amplas transformações sociais que ocorreram ao longo do século XX, em consonância com o surgimento de novos saberes sobre a sexualidade humana, influenciaram diretamente as mudanças de posicionamento da psicologia, medicina e áreas da saúde acerca das concepções teóricas patologizantes da homossexualidade.

No entanto, tais mudanças de posicionamento não foram aceitas hegemonicamente. Diversos grupos compostos por psicólogos e médicos conservadores se organizaram em uma tentativa de reafirmar as velhas concepções patologizantes que classificam a homossexualidade como um transtorno, a fim de deslegitimar esses novos saberes que a concebiam como uma possibilidade natural e saudável da orientação sexual humana. Esses grupos promovem as ditas terapias de “reparação” ou “reversão” da homossexualidade para a heterossexualidade. Com sua proposta terapêutica afirmam categoricamente que a inclusão de homossexuais no meio social não deve proceder pela aceitação e tolerância de suas práticas e sim pela completa transformação e cura de sua sexualidade desviante.

A premissa teórica fundamental que orienta a prática das terapias reparativas é a idéia que todo homossexual, lésbica ou bissexual é portador de um tal de “transtorno de déficit de gênero”. No caso do homem, esse déficit se refere a uma falta de masculinidade, que por sua vez seria o fator desencadeante da atração sexual homoerótica. O homossexual, por sofrer dessa “falta" inerente a sua condição, projetaria seus desejos, fantasias e demandas em homens idealizados, que supostamente possuiriam a masculinidade que ele não possui.

A etiologia da homossexualidade masculina é descrita pelos terapeutas do armário como tendo origem na infância, a partir de problemas vinculados as relações parentais, abusos sexuais e experiências traumáticas. No campo das relações parentais, a mãe ou a figura feminina que ocupa esse papel é descrita em relação ao filho como sendo demasiadamente dominadora, possessiva e amorosa, mantendo uma relação de proximidade tal, que a criança criaria ao longo de seu desenvolvimento uma falsa identidade baseada em “identificações inadequadas” com a figura materna, se afastando então de sua “autêntica identidade masculina”. Já o pai aparece como uma figura emocionalmente ausente, indiferente e hostil, que teria sido incapaz representar seu papel como principal figura masculina de referência para a criança.

Nesse aspecto, a homossexualidade é definida como uma patologia do desenvolvimento que teria sua origem na conformação incompleta ou defeituosa do Complexo de Édipo, conceito psicodinâmico cunhado pelo fundador da Psicanálise, Sigmund Freud.

Partindo então da premissa que a homossexualidade é um transtorno do desenvolvimento, afirmam tais “terapeutas” que os homossexuais que procuram as terapias reparativas sofrem de uma intensa insatisfação consigo mesmos e consideram a sua própria conduta como uma violação de seus desejos, valores e objetivos de vida. Procurariam auxílio terapêutico com o objetivo de modificar sua orientação sexual não desejada e desenvolver sua potencial heterossexualidade inata.

A homossexualidade é então interpretada como uma busca inconsciente por autonomia, reconhecimento e autenticidade. Uma tentativa de reestruturar o equilíbrio da psique, abalado pelos traumas e abusos vividos na infância. As relações homoeróticas produziriam alívio aos sentimentos de vergonha, insignificância, isolamento, humilhação e alienação experimentados pelos homossexuais na “relação conflituosa” com seu “falso eu”, gerando em contrapartida sentimentos de segurança, autoestima, afeto e admiração, oferecendo ao sujeito uma aparente reparação a seu déficit de masculinidade.

O aparente bem-estar experimentado através da relação homoerótica, segundo essa abordagem, seria geralmente substituído por uma presente sensação de inautenticidade e profundo mal-estar. A busca pela resolução dos traumas do passado através da conduta homossexual estaria destinada ao fracasso, pois em vez de solucionar o problema, geraria falsas expectativas, além de intensificar o sofrimento e a sensação de insatisfação, devido a seu caráter auto-destrutivo.

Para os terapeutas do armário, a dinâmica psicopatológica da homossexualidade geraria sérias conseqüências para a saúde mental dos sujeitos. A homossexualidade, entendida como “transtorno de déficit de gênero”, se configuraria como uma patologia que teria uma tendência para desencadear vários outros tipos de transtornos psiquiátricos. Assim, tais terapeutas afirmam categoricamente que a homossexualidade está relacionada a índices elevados de comportamento sexual de risco, transtornos alimentares, violência, transtornos de personalidade anti-social, drogadicção, parafilias, compulsão sexual, tentativas de suicídio e desordens de personalidade em geral.

Nesse contexto, as terapias reparativas funcionariam como uma ferramenta capaz de trabalhar as questões do passado, através da compreensão dos conflitos parentais edipianos. Seu desejo homoerótico seria desmistificado através do reconhecimento das necessidades legítimas de atenção, afeto e consideração por outros homens, que não foram supridas na infância. Assim, o homossexual aprende a satisfazer suas demandas afetivas com outros homens sem a necessidade de sentir desejos homoeróticos.

A primeira questão fundamental que deve ser problematizada diz respeito aos fundamentos teóricos que sustentam a premissa de que a heterossexualidade representa o natural, normal e saudável enquanto que a homossexualidade é definida como desviante, anormal e patológica. Aqui eu questiono o que é considerado natural e como esse natural é justificado no contexto das terapias reparativas.

Os terapeutas do armário afirmam que sua posição filosófica é essencialista. Acreditam que a estrutura anatômica sexual humana possui um design, cuja finalidade específica seria a relação sexual entre um homem e uma mulher com o objetivo único de reproduzir a espécie. Ainda afirmam que a identidade de gênero masculina ou feminina e a orientação heterossexual são desdobramentos dessa natureza biológica.

A questão é que a própria natureza não corresponde com idéia de coito com finalidade reprodutiva, visto que em varias espécies animais em que se pesquisou a sexualidade, o comportamento homossexual foi observado.

Mesmo a biologia, medicina e psicologia não chegaram a uma conclusão definitiva sobre as bases inatas da sexualidade. Na atualidade, a definição compartilhada pelas áreas citadas é a proposta pela Organização Mundial da Saúde, que considera a sexualidade como um fenômeno atravessado por uma pluralidade de dimensões que não pode ser reduzido a lógica do determinismo biológico. Aspectos da orientação sexual e identidade de gênero como desejos, fantasias, crenças e pensamentos se remetem a processos subjetivos engendrados por agenciamentos sociais, históricos, culturais e morais.

Dessa forma, a extensão da noção de anatomia sexual para a orientação sexual e identidade de gênero é inconsistente na medida em que nega grande parte das reflexões e evidências apresentadas por várias áreas do conhecimento. Além de diminuir o papel do contexto histórico, da cultura e dos valores na construção das identidades sexuais, em defesa de um reducionismo biológico arcaico. Por este mesmo motivo, não é a toa que toda a produção bibliográfica das terapias do armário ocorra fora do circuito acadêmico.

Se as terapias do armário não encontram subsídios teóricos consistentes nas teorias biológicas, me pergunto se não há outra fonte de conhecimentos da qual ela retira suas idéias de naturalidade da orientação sexual e identidade de gênero. Nesse sentido, aponto para um vínculo entre as terapias reparativas e concepções teológicas da existência.

A idéia de que a humanidade foi desenhada para a heterossexualidade foi concebida por vários grupos religiosos tradicionais, principalmente o cristianismo. E os terapeutas do armário não temem enfatizar que as concepções religiosas devem ser respeitadas como aspectos bem vindos da diversidade intelectual e que a filosofia da “lei natural” derivaria do conhecimento coletivo e intuitivo da humanidade.

As bases que fundamentam as terapias reparativas são teológicas e não epistemológicas. O discurso científico, nesse contexto, cumpre a função de legitimar a idéia de pecado, transformando-a em patologia, oferecendo-lhe um caráter cientifico e por isso “verdadeiro”.

Outro tópico relevante, diz respeito à tentativa de justificar e fundamentar a noção de “transtorno de déficit de gênero”, termo elaborado para qualificar a homossexualidade como patológica. Os terapeutas da reparação utilizam a teoria psicanalítica de Sigmund Freud, onde o conceito de complexo de Édipo é utilizado na tentativa de naturalizar os papéis parentais e a identidade sexual e de gênero da criança.

Esquecem os terapeutas do armário que o próprio Freud questionou a noção de uma heterossexualidade biologicamente determinada e também afirmou que a homossexualidade não era necessariamente uma patologia em si, reiterando a necessidade de mais investigações e estudos nessa área. Por fim chegou até a considerar a hipótese de que a bissexualidade seria possivelmente a base natural da sexualidade.

Como conseqüência, da mesma forma que a naturalização do coito vaginal exclui as relações homoeróticas e todas as formas de sentir prazer sexual não-reprodutivas, a naturalização dos papéis parentais exclui as variadas possibilidades de configuração familiares que existem hoje. É nesse contexto que as formas de parentesco que não obedecem à lógica binária heteronormativa, garantida pelo casamento monogâmico, seriam consideradas nocivas para a criança, pois supostamente comprometeriam seu “desenvolvimento natural e saudável”.

Os terapeutas do armário também afirmam que a homossexualidade, enquanto “transtorno de déficit de gênero”, contribuiria para o desenvolvimento de vários tipos de transtornos psiquiátrico em freqüência muito maior que na população heterossexual. Dessa forma, o suicídio, ansiedade, depressão, e transtornos afins que acometem homossexuais, derivariam de sua própria estrutura psíquica enferma.

Porém, o que não é levado em consideração, mas é de extrema importância para compreensão dos problemas relacionados à saúde mental da população LGBT, é o ambiente social extremamente hostil, repressivo e discriminatório que se faz presente. Dessa forma, a discriminação gera uma situação social de desamparo tal, que a alta incidência de depressão, ansiedade, comportamentos autodestrutivos, tentativas de suicídio e abuso de drogas entre homossexuais não causa nenhuma surpresa.

Os terapeutas do armário argumentam que a homofobia não pode ser tomada como explicação para a freqüência de tantas patologias psiquiátricas em homossexuais, pois estudos demonstrariam que mesmo em países tolerantes com a homossexualidade, a ocorrência de patologias é elevada e não muito diferente de países considerados intolerantes.

A primeira consideração a ser feita é de que políticas de aceitação e tolerância a homossexualidade não indicam necessariamente que em tais países os homossexuais sejam tolerados e aceitos. As pesquisas de opinião realizadas em vários países com gays e lésbicas, demonstram que a violência física e simbólica é um aspecto presente em suas vidas.

Desse modo, as declarações dos terapeutas do armário subestimam o impacto que a heteronormatividade e a homofobia possam ter na saúde mental de homossexuais. A negação de tais fatores serve ao claro propósito de confirmar as premissas patologizantes da homossexualidade.

Sobre as questões ligadas a prática clínica, os terapeutas do armário defendem que suas técnicas e procedimentos psicoterapêuticos auxiliam os homossexuais a recuperar sua masculinidade inata, e conseqüentemente sua autoestima, confiança e qualidade de vida.

Afirmam que os resultados obtidos comprovam a eficácia de tais terapias em curar a homossexualidade. Reiteram também que atendem exclusivamente sujeitos insatisfeitos com sua homossexualidade e que desejam voluntariamente modificar sua orientação sexual para heterossexualidade.

No entanto, as terapias do armário são práticas antiéticas por apresentarem uma base teórica inconsistente e um material empírico questionável, além de terem como fundamento um discurso religioso moralizador que condena e denigre a homossexualidade. Os questionamentos sobre a noção de natureza, desenvolvimento, relações parentais, orientação sexual e identidade de gênero, demonstram a fragilidade argumentativa de tais terapias.

A impasse ético que reside no cerne da questão é que os conflitos e angústias experienciados pelos homossexuais são interpretados pelos terapeutas do armário como tendo origem em seu desejo homoerótico e não no ambiente social hostil em que o mesmo está inserido. O terapeuta torna a homossexualidade o foco da terapia, interpretando-a como a fonte de sofrimento do sujeito, pois considera que em todos os homossexuais há uma heterossexualidade inata que não foi desenvolvida adequadamente e que por isso sofrem por sua condição.

Portanto, como contraponto a posições moralizantes e normatizadoras da sexualidade por parte de profissionais de psicologia, a formação do psicólogo deveria contemplar estudos mais aprofundados sobre gênero e sexualidade. Estudos que não se limitem ao âmbito das teorias psicológicas sacralizadas, pois isso possibilitaria aos psicoterapeutas e futuros psicoterapeutas, nem tanto uma visão diferenciada ou mais adequada sobre a sexualidade, mas a construção de uma reflexão crítica sobre as próprias condições em que o olhar clínico das teorias psicológicas sobre a sexualidade emerge a partir de condições históricas, culturais e sociais. Permitiria aos clínicos refletir sobre as relações de poder que engendram a complexa rede de interações entre terapeuta e paciente, além de trazer a possibilidade da desconstrução de categorias clínicas reificadas e naturalizadas sobre a sexualidade que ainda permanecem no discurso de muitos profissionais e currículos acadêmicos, fazendo-se reconhecer sua natureza metafórica, transitória e contextual.

Nesse sentido, as verdades construídas socialmente sobre os corpos e o sexo devem ser questionadas, criticando a forma como as mesmas são idealizadas e essencializadas em modelos restritos de identidades e condutas. A desconstrução da pedagogia heteronormativa possibilita o rearranjo dos discursos sobre sexualidade, tornando-os plurais, flexíveis e menos normativos.

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