quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A lâmpada e o inseto, uma breve análise de Franz Kafka.





No meio duma praça vazia, gelada e nevada, um longo inseto joga um balde num poço. Ele cai durante alguns segundos e do vazio bocejante vem um som seco. Não há água. A criatura recua, ansiosa. Permanece imóvel. Seus olhos verde violáceos vibram. Chegara a época da sede.

Aos 36 anos de idade, Franz Kafka vive uma crise de esterilidade artística. A primeira grande guerra havia acabado, ele estava apaixonado e vivendo seu sonho de ser escritor, no entanto sentia-se impedido de mergulhar em si para ressurgir com símbolos e prosa. Havia um obstáculo indefinido algo intangível que o detinha. Da busca obstinada pela razão ou a forma de seu impasse surgiu uma figura distinta a quem muito do seu sofrimento atribuiu importância: seu pai.

Escrito com letra grande e descuidada, as poucas correções parecem indicar que Kafka redigiu a Carta ao Pai com a firme intenção de enviá-la ao próprio. Todavia não conseguiu fazê-lo. Possivelmente devido a algum receio agudo sentido no instante, acabou por entregá-la à mãe sabendo que nunca chegaria ao seu destinatário. Assim percebia sua mãe, como uma sombra de seu pai. Apesar de ter sido sempre sensível ao mal estar do filho, muitas vezes foi percebida como santa e vista como salvadora e mártir, ainda assim, compactuava com os métodos educacionais do velho Kafka. A mãe prendia-o à órbita maligna do pai.

O estilo literário da carta é advocatício, aprendido durante os anos de faculdade de direito: é uma petição ao pai "juiz, tirano, regente, rei e Deus". Numa alternância de irrefreada acusação e confissão, Franz expõe, desde sua infância, como sua relação com seu pai ocorreu social e intimamente. O tema afetivo predominante da narrativa será a culpa de não ter sido aquilo que seu pai queria que fosse. Contudo a mimese dos mores e da performance paterna, tão almejadas, será repudiada ou questionada pelo próprio autor. Revela-se então uma ambígua relação de intenso amor e desmedido ressentimento pelo pai, resultando num devaneio sobre o exercício do Poder e a manutenção da Moral. 


Em parte, esse ressentimento se originou duma contraposição de interesses materiais: devido a determinadas contingências sócio-históricas do final do império austro-húngaro, a geração de pais judeus que havia ascendido comercialmente entrava em freqüentes conflitos com seus filhos, que buscavam nos estudos acadêmicos a garantia de empregos mais estáveis que os protegessem do crescente anti-sionismo que acompanhava a criação de uma cultura e identidade nacional germânica entre populações de origens étnicas variadas. Franz desempenhou seu papel histórico: assumiu com absoluta abnegação a iniciação no mundo do trabalho apesar de, em certos instantes, sentir-se martirizado a ponto de pensar em suicídio. Alegava que o trabalho o deixava exausto e despido de criatividade. 

Voltando à carta. Não obstante o viés acusativo, certa produção de sentido ocorre no instante confessional de sua narrativa. Percebem-se princípios de subjetivação articulados pela capacidade extraordinária de descrever e metaforizar sua neurose, uma aproximação inconsciente dos complexos onde finalmente Kafka lhes dá vida em prosa, infelizmente sem nunca obter um insight sobre como transcender o insustentável pesar da sua vida. Franz buscava desesperadamente tornar-se o autor de sua própria narrativa, algo que nunca alcançaria. Nosso herói será sempre o personagem de uma reelaboração sisífica, que invariavelmente se constituirá de "narrativas grávidas de uma moral, que jamais dão a luz" (Walter Benjamin). Acho que esse insight e subjetivação talvez pudessem ter ocorrido durante uma intervenção terapêutica, num passado alternativo, em que o escritor se encontrasse com o Freud ou o Jung.   

Finalmente, voltando ao pai da carta, surge uma qualificação que sintetiza a produção de sentidos de Franz: seu pai é uma "figura mística, uma espécie de Deus todo poderoso". Acredito que mais do que um Javé, ele fora percebido como um demiurgo. O próprio sentido da palavra torna possível concebê-lo como um complexo sobrepujante que atrai e subjuga todos os outros agrupamentos de conteúdos subjetivos. Sua intensa carga afetiva acabava por agenciar esses outros conteúdos. 


Exemplo dessa inflexão é como Franz concebia sua vida romântica, onde uma constante desaprovação do pai se manifestava pela determinação de que nenhuma mulher de sua escolha seria boa o suficiente, o pai tendo proposto arranjar dois casamentos. Entretanto contrariando os desígnios paternos, Kafka sempre escolheu livremente as moças com as quais tinha namoros breves. Estes muitas vezes se resumiam a uma intensa atividade de cartas escritas, que rapidamente se transformavam em noivados sem conclusão. Apesar de sua rebeldia e ímpeto, Franz sentia-se incapaz de casar. Nunca teria todas as qualidades que seu pai tinha, nem as mulheres pelas quais se apaixonava seriam boas o suficiente. Terminava sempre por considerá-las inferiores, despidas de interesse, caricatas. 


Outro complexo, ou agrupamento de sentidos, profundamente influenciado pelo paterno era a sua concepção do próprio corpo. O próprio Franz comenta que mesmo sendo mais alto que o pai, sentia-se sempre menor, inferior, fraco, doente. Mas nunca o fora, era sim um reconhecido esportista, naturista e vegetariano. Não é nenhum lance extraordinário do espírito conjecturar onde e como se formou sua hipocondria.

Para complementar essa breve construção interpretativa desse autor fundamental do século XX, gostaria de apresentar rapidamente três de suas obras que podem nos fornecer mais insumos para possíveis reflexões:

- O Castelo: consiste na história de um agrimensor chamado K. (mesmo sobrenome do protagonista do livro O Processo) que é contratado por um grupo de oficiais dum vilarejo que vivem num castelo. Contudo, por mais que tente, K. não consegue entrar em contato com eles, esperando no vilarejo por sua entrevista até morrer. As interpretações do livro são muitas, desde uma crítica à burocracia estatal até uma interrogação religiosa judaica. Há também a possibilidade duma análise de viés psicanalítico, onde o castelo seria o inconsciente de K. e a vila sua consciência. Contudo por se tratar de um autor do século XX, vivendo as incertezas geradas pelo incessante processo de urbanização e industrialização européia, além da Primeira Guerra Mundial, Kafka apresenta-nos um personagem que, assim como mais tarde Albert Camus nos revelará, não encontra respostas para suas interrogações humanas, diante de um mundo que mal responde. Fazendo uso de uma premissa absurda, o personagem do escritor indica não haver a possibilidade de revoltar-se contra o mundo. Ao mesmo tempo em que toma conhecimento do absurdo que é sua eterna espera, o personagem percebe que foi absorvido pela rotina da espera aos oficiais, agora natural, fatal.

- O Processo: Josef K. acorda certa manhã e sem motivo algum é preso, sendo sujeito a um longo e incompreensível processo por um crime nunca revelado, que ele mesmo desconhece. A narrativa é carregada e conduzida em uma atmosfera desorientada e avulsa na qual o personagem Josef K. está imerso. Tal atmosfera deve-se mormente à seqüência infindável de surpresas quase surreais, geradas por uma lei maior e inacessível, que está  no entanto em perfeita conformidade com os parâmetros reais da sociedade moderna. O absurdo presente em toda obra é o que dá ao leitor a sensação incômoda própria do estilo da obra kafkaniana. Nesta obra dois elementos de análise despontam imediatamente, um deles sendo a arbitrariedade legal do sistema que o processa - numa clara referência ao pai - e o outro é um insight pré foucaultiano sobre a cada vez mais sofisticada sociedade disciplinar industrial européia (ordenação do espaço, do tempo de trabalho, dos moldes sociais através dos agenciamentos contidos nos discursos de territorialização).

- A Metamorfose: "Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto." Esta é uma história de caráter profundamente biográfico cujo centro da narrativa não é tanto Gregor senão sua família e a metamorfose desta. Este grupo de pessoas passará de uma postura de desespero e medo empático à necessidade de emancipação e hostilidade. Apesar de ter se tornado uma barata, Gregor buscará manter-se fiel às suas rotinas. Porém seu corpo o faz perceber que não é mais humano. O horror à sua nova fisionomia gera um sentimento de rejeição e desprezo por parte de sua família. Pior, o verme lhes dá razão, e antes de morrer se assegura que seu fim é absolutamente necessário para que sua família possa ser livre e romper a tétrica simbiose que tem com Gregor. Darei algumas sugestões para eixos de análise: opostos conflitantes, dinâmica familiar e corpo. Quem leu o livro concorda?

Leiam Kafka. É mais que literatura.

Muito obrigado!




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