Resumo:
A emergência da psicopatologia como campo do saber e
campo de intervenção clínica e hospitalar está marcada por um movimento, do
pensamento laico ocidental, caracterizado pelo silenciamento de experiências e
visões de mundo irredutíveis ao discurso racionalista. Se, por um lado, a
desrazão foi desprovida da prerrogativa de enunciar um discurso de verdade,
como indicado nos clássicos estudos de Foucault sobre a loucura na modernidade,
por outro, também a experiência religiosa correu o risco de ser inteiramente
reduzida à patologia. A fenomenologia da psicose, conforme suas descrições
psiquiátricas no DSM-IV-TR e na CID-10, pode facilmente se prestar a
classificar, indiscriminadamente, crenças exóticas e experiências sensoriais
não-compartilhadas pelo profissional de saúde como sintomáticas de transtorno
mental grave. Considerando a realidade do atendimento de saúde mental no
Brasil, principalmente a violência e a desumanização que - a despeito do
movimento de reforma psiquiátrica - ainda o caracterizam, receber um diagnóstico
psiquiátrico têm sérias conseqüências humanas. Sem me propor a resolver o
delicado problema epistemológico da distinção ontológica entre experiência
religiosa e "doença mental", problematizo as classificações
psiquiátricas e apresento alguns critérios mínimos para excluir do
psicodiagnóstico formas comuns de experiência religiosa brasileira.
Para versão completa ir ao link a seguir e procurar por Bizerril:
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Um rapaz comum numa igreja no centro da cidade do Rio
de Janeiro está chamando multidões: vê e ouve a Virgem Maria, depois transmite
aos fiéis as suas mensagens enquanto entoa cantigas em seu violão. Exu
Mangueira, Marabô e Caveira estão na gira, charutos furibundos acesos, para
quebrar as demandas de uma senhora que tem dores crônicas nas costas, resultado
do mau olhado da vizinha. Um homem espera deitado em sua cama, vestido de
branco, as quatro da tarde, pela cirurgia espiritual que o livrará das
influências nefastas dos obsessores que o entristecem e cansam. Um grupo de cinquenta
pessoas acaba de ter uma miração onde o espírito do chá do daime, guardião de
um conhecimento ancestral da relação do indígena com a floresta, lhes mostrou
como todos os seres deste planeta são um organismo e espírito só.
O cotidiano brasileiro muitas vezes me assombra:
tenho a impressão de que este país é uma fonte de milagres, maldições e magia.
Vivemos em um cosmo encantado (excelente termo do professor Bizerril), com dias,
muitas vezes, pesadamente permeados de prosa e poesia mística, onde os deuses
se alastram desde as calçadas até os domicílios, repousando em seus templos e
desempenhando funções em espaços públicos. Como diz o preâmbulo de nossa
constituição, documento que estabelece nosso Estado de direito, supostamente
laico: “(...) promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.
Como psicólogo me pergunto como lidaria com uma
situação clínica onde a produção de sentidos que permeia a narrativa d@
paciente (que palavra terrível essa, tema para futuras discussões) fosse
norteada por uma simbologia e disposições corporais articuladas por uma
semântica e performance religiosa? Processos de individuação, empoderamento,
insight e sociabilidade que ocorrem a partir de epistemologias e tecnologias
corporais não validadas e reconhecidas pela academia. Como interpretarei tais processos? Serão alucinações, delírios? Se me guiasse pelos diagnósticos do
DSM-IV-TR ou CID-10 chegaria a conclusão de que as religiões precisam de
antipsicóticos e esses neurolépticos seriam o apocalipse do Vaticano. Richard
Dawkins adoraria essa idéia...
As últimas afirmações são um exemplo de reductio ad absurdum, que no entanto,
aparecem frequentemente escamoteadas e diluídas nos discursos racionalistas e
reducionistas propagados pela medicina ocidental. Tenhamos em mente uma verdade
honesta e impiedosa: nossos currículos acadêmicos, doutrinados pela comunidade
discursiva dos profissionais da saúde, essencialmente os representantes dos conhecimentos biomédicos,
são compêndios de conhecimento anatomofisiológico e patológico. Como diz o
professor Bizerril (2002): “a questão do assim chamado psicossocial é um
adereço, um ornamento (...)” somado homeopaticamente à nossa formação, que
felizmente, ganha certo espaço e profundidade na mão de alguns excelentes
professore/as.
Isso me leva a acreditar firmemente que a ausência de
uma boa compreensão cultural do lugar no qual se situa o sujeito brasileiro é
uma das piores lacunas de nossa educação psicológica. Mas, atenção: quando digo
“sujeito brasileiro”, me refiro a um fenômeno identitário complexo, construído
por uma miríade de disposições corporais, performances e discursos oriundos de
uma realidade sóciocultural multiétnica. Portanto, o termo “sujeito brasileiro”
não é uma acepção ingênua totalizante, que corresponderia a uma aglutinação e
homogeneização conceitual duma identidade coletiva (nacional) impossível, como,
por exemplo o termo povo brasileiro.
Pelo contrario, “sujeito brasileiro”, leva em seu leque semântico, como sentido
dominante, a palavra “polifonia”: a idéia de participação das várias vozes -
das várias etnias - que formam o país Brasil, na constituição dessa identidade
subjetiva e nacional; levando em conta sempre que dependendo das condições
sócio-históricas, econômicas, culturais e regionais, algumas dessas vozes terão
os meios de silenciar outras, impondo-se, tornando-se hegemônicas, produzindo
assim uma imensa variação de narrativas subjetivas pelos sujeitos brasileiros,
cada qual com características específicas atreladas aos dispositivos de
controle discursivo e prático, instituídos.
Assim sendo, retomo a pergunta: como atuar diante de
um sujeito polifônico que traz ao consultório uma imensa riqueza de recursos
discursivos e performáticos que podem passar por uma produção de sentidos
construídos sobre os vários discursos e performances religiosas brasileiras? É
fundamental que o psicólog@ tenha uma capacidade crítica, analítica e arcabouço
cultural que permita distinguir claramente o contexto no qual se insere a
expressão de seu paciente. O exercício da clínica torna-se então uma verdadeira
etnografia da subjetividade do paciente, onde são inúmeros os fatores que podem
interferir na compreensão sensível, por parte d@ psicólog@, duma narrativa
atravessada pelo religioso. Ao pensarmos sobre esses fatores, percebemos que há uma enorme quantidade deles, e estes vão desde o racismo – resultado de como “(...)
preocupações eugênicas marcaram o conluio entre polícia, ciências da saúde e
igreja na perseguição sistemática às religiões afrobrasileiras (...)” (Bizerril, 2002) – até a compreensão do
fenômeno de sofrimento e individuação no presente sistema econômico ocidental,
que naturalizado, muitas vezes deixa passar desapercebido que “(...) a subjetivação e lógica pela
prática do consumo da parcela da população mundial plenamente incluída no
sistema capitalista, caracterizada pela hiperindividualização, pelas
instabilidade das condições sociais e dos códigos culturais dificilmente pode
ser apresentada como particularmente favorável à saúde e ainda menos à
felicidade” (Bizerril, 2002).
Portanto, como vivenciar no espaço clínico outras
realidades culturalmente possíveis sem desautorizar a experiência subjetiva do
outro? Podemos, entre outras iniciativas, começar por rever a função do
psicodiagnóstico, já que “(...) a utilização acrítica de dispositivos
classificatórios opera a reificação das patologias já disponíveis, o que em
última instância acaba por fabricar a doença ao definir uma experiência amorfa,
conflitiva ou indefinida em termos inteligíveis (e até confortáveis) para @
profissional, mas não necessariamente produtivos para um encaminhamento da
experiência d@ paciente. Infelizmente, o contexto de inteligibilidade do
diagnóstico psicológico e psiquiátrico clássicos é pró-patologia. Ou seja, o
foco está na doença e não na saúde. Como contexto ritualizado, a entrevista
diagnóstica realizada pel@ profissional dotada de autoridade
biopolítica para decidir sobre a normalidade de outrem, tende a converter a fala do sujeito em indicador sintomático de uma síndrome. A mesma fala em um outro contexto, como o de uma conversa informal entre amigos, tenderia a gerar outros sentidos. O consultório constitui um setting ritual que predispõe à identificação das experiências do outro como patológicas, em função da própria expectativa característica da situação diagnóstica: é preciso encontrar um nome proveniente do catálogo de doenças para descrever a experiência narrada. Na situação de entrevista diagnóstica, lapsos comuns ou idiossincrasias absolutamente aceitáveis tornam-se sintomas” (Bizerril, 2002).
biopolítica para decidir sobre a normalidade de outrem, tende a converter a fala do sujeito em indicador sintomático de uma síndrome. A mesma fala em um outro contexto, como o de uma conversa informal entre amigos, tenderia a gerar outros sentidos. O consultório constitui um setting ritual que predispõe à identificação das experiências do outro como patológicas, em função da própria expectativa característica da situação diagnóstica: é preciso encontrar um nome proveniente do catálogo de doenças para descrever a experiência narrada. Na situação de entrevista diagnóstica, lapsos comuns ou idiossincrasias absolutamente aceitáveis tornam-se sintomas” (Bizerril, 2002).
Como profissionais compromissados com o bem estar do
outro não podemos furtar-nos a uma educação rica, interdisciplinar, que se
debruce sobre o fenômeno da alteridade levando em consideração sua polifonia.
Ao nos atermos aos conteúdos restritos das bulas acadêmicas nos tornamos agentes
coniventes com um sutil pogrom (um paradoxo interessante) de desertificação,
por normatização acrítica, do ser-no-mundo do outro. Retomando uma afirmação
feita num post anterior, ao fazer discurso em nossas práticas clínicas, que
agenciamentos estamos reiterando ou propondo? O biomédico? Um compêndio de
nossas crenças pessoais? Uma reafirmação do hiperindividualismo do capitalismo
tardio? Antes da transferência há um lócus de onde ela se origina, como está
configurado esse lócus que é você, que sou eu?
Para mais insumos que enriqueçam as reflexões que
podem, ou não, surgir do meu comentário, aconselho vivamente a ler na íntegra o
texto do Professor Bizerril.
Saia do seu espaço de conforto.
Pedro, preciosas contribuições! Precisamos cotidianamente, na nossa práxis, relembrar disso... É mais fácil rotular disso ou daquilo e nos desimplicar de toda a complexa problemática envolvendo o tema. Parabéns mais uma vez pela bela iniciativa!
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