No entanto, como vemos com frequência no contexto clínico, não necessariamente o paciente está inserido em sua narrativa e caberia à diade paciente-psicólogo reinserir o protagonista em sua história. Esta leitura irá propor insumos vários para vertiginosas considerações. Aí vai uma pr@s colegas:
Este é um conto em forma de crítica literária – ou
vice-versa – que fiz algum tempo atrás. É uma reflexão literária lúdica sobre o
conto “Um discurso sobre o método”, do livro “A Senhorita Simpson” de Sérgio
Sant’anna, a partir de uma afirmação de Umberto Eco: “à parte as muitas e
importantes razões estéticas, acho que lemos romances [e contos] porque nos dão
a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é
indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro.”
Será mesmo?
.:.:.:.
A MARQUISE NO
DESERTO
Antônio de Luna
Nogueira
Vitor está delirando.
Duas semanas atrás, incapaz de concluir uma dissertação
final, ele decidiu juntar-se a uma caravana de ciganos que passava pela cidade.
Abandonou tudo, não avisou a namorada e nem levou a carteira. Na primeira
semana, foi bem acolhido pela comunidade, comeu do mesmo pão e bebeu do mesmo
vinho. Na segunda semana, apaixonou-se, e na sexta feira, isto é, horas atrás
da madrugada de hoje, casou-se.
As festividades foram opulentas, e após quitutes, canções
e danças de tempos remotos, iniciou-se o ritual de núpcias, consistindo na
ingestão, por parte do noivo, de uma misteriosa beberagem produzida pela sábia cigana
Verruga de um Olho Só.
Sozinho, abandonado no deserto pelos novos parentes,
Vitor enfrentaria “as Grandes Verdades Fundamentais do Homem e da Vida, para
que, enfim, após o expurgo das Ilusórias Impurezas, você possa retornar sendo
um Homem Maior”, como lhe disse seu cunhado meio bêbado. Vitor, sentindo os
primeiros efeitos da poção, assentiu inocentemente: “Tá bom.”
Belas palavras, muito simbólicas. Mas certas
experiências costumam ser muito pessoais e subjetivas, e agora, no caso de
Vitor, as palavras de seu solícito cunhado trazem as distantes lembranças de
sua vida passada, anterior à sua liberdade cigana: a namorada que tanto fingia
amá-lo; a discussão com o porteiro; a carteira que era sempre perdida; o gato
com fome; um conto sobre um potencial suicida... A Dissertação Final.
Transtornado, Vitor tenta afastar a temível lembrança
meditando com alguns mantras lidos na orelha de uma revista. Num primeiro
instante, parece funcionar. Mas a ameaça é avassaladora e o toma por completo.
Como que empurrado por uma força desconhecida, ele se ergue e grita
desesperado: “Mas eu não lembro a pergunta!”
Sua voz parece perder-se na imensidão deserta de terra,
lua e estrelas silenciosas. Porém, aos poucos, eis que surge um certo Eco
respondendo: “à parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos
romances [e contos] porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos
nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um
lugar mais traiçoeiro.”
Vitor deixa o corpo cair e fica imóvel. “Valeu” ele
sussurra rancoroso. Mas, de repente, o véu da realidade parece dilatar-se e
contrair-se ao mesmo tempo. Vitor é
atravessado por um súbito espasmo e solta um urro pavoroso. Seu corpo se
contorce, sua alma se transmuta: de pé, ele incorpora um professor palestrante
de voz profunda. Em seguida, suspira confiante e inicia:
- Em primeiro lugar, é necessário entender como diferem
a produção da verdade no conto e no mundo real: ambas são formas de apreensão
lingüística de uma mesma realidade objetiva, e construções discursivas articuladas
a partir de moldes ideológicos semelhantes, produzindo representações e, enfim,
realidades simbólicas. Contudo, o modo de apreensão e, sobretudo, o espaço
simbólico onde se efetiva a sistematização discursiva da realidade objetiva são
diferentes no conto e no “mundo real.”
Vitor puxa orgulhosamente um bigode imaginário.
- No dito “mundo real”, a realidade objetiva é a série
de intermináveis dinâmicas coexistindo e acontecendo simultaneamente num
universo. – Vitor lembra-se de já ter dito isso alguma outra vez. – É impossível,
porém, produzir uma verdade que seja capaz de apreender a totalidade dessa
constância, desse movimento, pois seria algo intrinsecamente paradoxal, algo
como tentar parar o tempo para ver sua passagem... Assim, as “verdades reais”
estão sujeitas às mudanças de sua matriz, e o discurso real acaba sendo sempre
aproximativo, mas nunca definitivo ou, de fato, real.
Por outro lado – continua lentamente, após rápida
ponderação - o espaço simbólico onde se efetiva essa sistematização discursiva
está diretamente relacionado com o espaço real objetivo que a produz. Certo, a
apreensão pode sofrer, e certamente sofre, diversas filtragens determinadas por
questões circunstanciais, ideológicas, individuais, coletivas etc. Contudo,
seja a partir do sistema ideológico que a justifica (portanto, mentiras
institucionalizadas estão valendo!), ou até da própria arbitrariedade do signo
lingüístico que a nomeia, a verdade do “mundo real” possui, de uma forma ou de
outra, um correlato real objetivo ao qual está forçosamente ligada e comprometida
a representar. Portanto, ela possui um caráter e um impacto sensível, pois ela se efetiva, ela “vem
a ser” discursivamente, bem ou mal, no real objetivo.
Um chacal uiva distante. Vitor toma um susto afetado de
acadêmico, mas sem jamais perder a gravidade, ele prossegue:
- Já, no conto, ou no “mundo literário”, estes fenômenos
submetem-se a outras regras. De fato, ocorre a apreensão da mesma realidade
objetiva, há uma produção discursiva para sistematizá-la etc. Porém, neste
caso, há uma grande diferença: a apreensão não sofre com a inapreensível e
constante “mutabilidade” do real objetivo. De tal forma, que a realidade no
conto possui uma temporalidade única, com começo, meio e fim formalmente
delimitados. Assim, a verdade no conto estaria preservada por ser imutável. A
realidade produzida nesse tempo estende-se no infinito, numa eterna repetição:
ela será sempre... Aquilo.
De braços esticados, Vitor contempla longamente os
astros. Eles devem ter um brilho particularmente bonito para ele esta noite.
- Enfim – ele retoma – o espaço simbólico onde ocorre a
produção da realidade de um conto, não está inteiramente comprometida aos seus
correlatos reais. Isto se deve ao fato de que o conto, ao produzir sua
realidade, apenas serve-se de
elementos reais, articulando-os, no entanto, num espaço imaginário. A ação
efetivada nesse espaço não ocorre objetivamente na realidade, mas sim numa
realidade imaginária sustentada simbolicamente por elementos reais.
Evidentemente, há contos sobre fatos, pessoas e coisas reais. Porém, eles não
deixam de ser representações ocorrendo num espaço imaginário onde esse
determinado “real” é rearticulado literariamente.
E é justamente aí – ele diz enquanto senta triunfante – que
se encontra a noção bastante subjetiva de “confortável sensação” anunciada pela
Ecoante afirmação de outrora: a realidade do conto, isto é, o mundo por ele
produzido é um discurso sistematizando uma realidade espacial e temporalmente
delimitada, que não está forçosamente comprometida e sujeita às mudanças
sensíveis da realidade objetiva. Ou seja, é um espaço discursivo imaginário de
manifestação da realidade; relativamente familiar, pois se serve de elementos
reais em sua elaboração; e seguro, pois seu discurso não está sujeito a uma
transformação estrutural, mas sim, no máximo, a reinterpretações, isto é, meros
discursos sobre o discurso...
Esta última afirmação desconcerta o palestrante
incorporado. Ele matuta.
- Espere aí... Suponhamos que...
Mas antes de concluir, ele dispara numa corrida frenética
em direção a um rochedo alto, escalado furiosamente em apenas alguns segundos.
No topo da pedra gigante, logo na beirada, Vitor sente-se capaz de ver as
coisas com clareza. A paisagem se estende em silêncio. Em algum lugar, os
ciganos o aguardam.
- Agora sim! Suponhamos que a beira deste penhasco é, na
verdade, como no conto de Sérgio Sant’Anna, a marquise do 18º andar de um
prédio sendo utilizada por um limpador de janelas. Eu sou o limpador, à minha
volta há prédios e lá na rua, passa a população ocupada com seus afazeres
cotidianos. Eu não estou fazendo absolutamente nada: só fumando um cigarro. No
entanto, as pessoas da rua começam a me olhar e a interpretar minhas ações e
logo, por alguma razão, torno-me um potencial suicida.
Fica evidente, em primeiro lugar, que até minha inação
produz, invariavelmente, um sentido. Esse sentido, por sua vez, é
sucessivamente definido e posto em prova através de diferentes ordens do
discurso representando diversas formas e áreas do conhecimento
institucionalizado, como a filosofia, a psicologia, o misticismo religioso etc.
Eu sou construído, desconstruído, representado e atravessado por esses vários poderes
discursivos que, a priori, representam
formas legítimas e convencionadas de produção de conhecimento. Entretanto, eu
não efetivei conscientemente nenhuma
ação que pudesse vir a ser apreendida como uma tentativa de suicídio. Trata-se
de um enorme engano... E ainda assim, os discursos, sem medo algum, a partir de
somente alguns elementos reais e de várias conjeturas ideológicas
institucionalmente sustentadas, sistematizam e representam a apreensão subjetiva da realidade presente de um suposto suicida, no caso, eu.
E através da articulação discursiva desses poucos
elementos apreendidos a meu respeito, minha realidade, minha própria ideologia
existencial, se vê subvertida. As próprias condições precárias de minha vida
operária, por exemplo, que antes representavam meros fatos imediatos e
indiscutíveis com os quais tinha lidar no presente de meu cotidiano, adquirem
um novo sentido respondendo à minha recém-nascida ideologia suicida: a necessidade de batalhar para viver
torna-se, pela primeira vez, o motivo pelo qual se abandona a batalha da vida.
Tudo depende do ângulo com que se encara a coisa... –
ele pronuncia, apontando um enfático indicador para o alto. - O que me leva a
concluir que, claramente, eu não estou produzindo minha realidade, eu não
“venho a ser” fenomenologicamente através de minhas ações e de meu próprio
discurso. Pelo contrário, estou sendo o
produto dos discursos e, simultaneamente, seu objeto e instrumento de análise.
Meu cogito ergo sum cartesiano foi
substituído por um exacerbado esse est
percipi berkeleyano onde sou sempre o objeto percebido e nunca o agente que
o percebe.
Até aí, posso afirmar que eu não existo. Sou somente
aquilo que o discurso me faz ser e, agora, o discurso faz de mim um suicida.
Porém, eu ainda não saltei, ainda não cedi minha vida a poder discursivo algum.
E diante minha inação, de minha relutância em efetivar uma ação institucionalmente
enquadrada, as produções discursivas se empilham umas sobre a outras e
tornam-se meros sistemas simbólicos convencionados, articulando seus
constituintes de tal forma a justificarem a realidade em função de seus
interesses ideológicos, ainda que esta mesma realidade jamais venha a ocorrer.
É este, na verdade, o grande paradoxo de toda minha
situação: eu não produzo uma ação e, não obstante, minha inação suscita uma
série de apreensões e produções discursivas contraditórias, complementares,
etc. E, ainda assim, atravessado por todos esses discursos, nenhum deles é
capaz de representar uma verdade indiscutível.
No fim, sou eu quem atravessa o discurso: não sou nenhum
deles. Aliás, é por isso que sou encaminhado ao hospício, esse no man’s land institucional para quem
não se enquadra nas ordens institucionalizadas do discurso, ainda que seu
discurso individual seja perfeitamente capaz de lidar com a realidade objetiva...
Isto é, um louco. – uma breve pausa melancólica. – É... Bem que o Foucault já
dizia...
O sol nasce vagarosamente numa belíssima paleta de
cores. Vitor boceja.
- A partir destas reflexões, ao se considerar a verdade
do conto como somente uma produção discursiva respondendo a critérios de
apreensão e sistematização ideologicamente orientados, não resta, de fato, nem
o ilusório conforto das verdades no “real imaginário” da literatura: o “mundo”
produzido no conto é mais volátil do que um discurso produzido num espaço real
objetivo. Além de ser outra mera convenção simbólica, sua realidade se produz
num espaço imaginário, ou seja, ela não se efetiva sensivelmente. E isto só
contribui para o caráter ilusório e traiçoeiro do conto: ele “vem a ser” num
espaço simbólico imaginário e, por isso mesmo, pode produzir qualquer
construção discursiva sem inquietar-se com seu conteúdo, pois a realidade
produzida nesse espaço não precisa estar inteiramente comprometida com a
realidade objetiva, podendo, inclusive, servir-se dela de forma bastante
indiscriminada, pois, ultimamente, ela será justificada pela própria ordem do
discurso do conto e a instituição literária.
Há, todavia, uma verdade indiscutível: apesar do
sistemático questionamento da realidade, há uma realidade sendo produzida para
que ocorra esse questionamento...
O palestrante parte, enfim, deste plano para o melhor. Agora,
resta apenas Vitor, satisfeito e exausto, sonhando acordado com os braços de
sua noiva enquanto inicia a descida do rochedo. Mas, de repente, ele pára, dá
meia volta e retorna à sua marquise imaginária: “Na verdade,
agora se instala uma dúvida em mim: o que ocorreria se a ação do limpador tivesse
se realizado? Que discurso prevaleceria?” E cansado, sem refletir muito sobre
as implicações sensíveis de suas dúvidas, Vitor salta do penhasco.
Ele jamais soube a resposta, mas foi encontrado
estatelado no chão por sua família cigana. Vitor não se tornara um Homem Maior,
segundo os costumes, mas foi com todas as honras ciganas e com o choro
inconsolável de sua esposa recém-viúva que o enterraram sob o críptico
epitáfio: “Aqui realmente jaz Vitor?”
BIBLIOGRAFIA
BERKELEY, George. Os Pensadores. Tratado sobre os princípios do
conhecimento humano. São
Paulo: Nova Cultural Ltda, 2005.
DESCARTES, René. Discours de la Méthode. Paris: Garnier Flammarion, 2000.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada
em 2 de setembro de 1970. 15ª Ed. São Paulo: Ática, 2007.
SANT'ANNA, Sérgio. A senhorita Simpson: histórias.
São Paulo : Companhia das Letras, 1989.
SARTRE, Jean-Paul. L’existentialisme est un humanisme. Gallimard, 1996.
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