segunda-feira, 5 de março de 2012

A Marquise no Deserto, por Antonio de Luna Nogueira





Antes que mais nada, gostaria de elucidar que meus comentários feitos a respeito desse texto partem de um ponto de vista obejtivo, que no entanto conta com um invariável tempero de apoio fraterno. 

Há muito tempo não leio um texto como este. Assim decidi publicá-lo, porque gostei muito de como o autor passeia tranquilamente entre crítica literária, filosofia, ontologia, análise do discurso e dá um pulo na saúde mental, tudo feito em formato de conto. Metatextual? Sem dúvida, e com propostas de reflexões existenciais que resumem e expandem velhas discussões das ciências humanas e filosofia que também tangem a psicologia. 

Companheir@s psicólog@s, aconselho vivamente esta leitura. Ao discutir a diferença entre o "mundo real", o "mundo literário" e suas disposições exitenciais, o autor propõe uma  reflexão literário-ontológica, que também pode ser adequada a um contexto clínico sob a forma da seguinte pergunta: quais são as relações entre a construção da narrativa subjetiva e o processo de subjetivação? Afinal, se produzo uma narrativa subjetiva, tudo indicaria que sou o protaganista dessa narrativa ou percebo ser o produtor de sentidos acerca daquilo que narro. Portanto, toda e qualquer narrativa minha seria uma etapa do meu constante processo de subjetivação. 


No entanto, como vemos com frequência no contexto clínico, não necessariamente o paciente está inserido em sua narrativa e caberia à diade paciente-psicólogo reinserir o protagonista em sua história. Esta leitura irá propor insumos vários para vertiginosas considerações. Aí vai uma pr@s colegas:

"Meu cogito ergo sum cartesiano foi substituído por um exacerbado esse est percipi berkeleyano onde sou sempre o objeto percebido e nunca o agente que o percebe".          

Sugestão: leve isso para a sua intra-inter-supervisão e explore o nosso fenômeno subjetivo da contra transferência sob novos referenciais subjetivo-discurisivos. Afinal, @ psicólog@ está só facilitando a construção de narrativas subjetivas para a subjetivação alheia?

Ao texto!


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Este é um conto em forma de crítica literária – ou vice-versa – que fiz algum tempo atrás. É uma reflexão literária lúdica sobre o conto “Um discurso sobre o método”, do livro “A Senhorita Simpson” de Sérgio Sant’anna, a partir de uma afirmação de Umberto Eco: “à parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances [e contos] porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro.”

Será mesmo?

.:.:.:.

A MARQUISE NO DESERTO
Antônio de Luna Nogueira


Vitor está delirando.

Duas semanas atrás, incapaz de concluir uma dissertação final, ele decidiu juntar-se a uma caravana de ciganos que passava pela cidade. Abandonou tudo, não avisou a namorada e nem levou a carteira. Na primeira semana, foi bem acolhido pela comunidade, comeu do mesmo pão e bebeu do mesmo vinho. Na segunda semana, apaixonou-se, e na sexta feira, isto é, horas atrás da madrugada de hoje, casou-se.

As festividades foram opulentas, e após quitutes, canções e danças de tempos remotos, iniciou-se o ritual de núpcias, consistindo na ingestão, por parte do noivo, de uma misteriosa beberagem produzida pela sábia cigana Verruga de um Olho Só. 

Sozinho, abandonado no deserto pelos novos parentes, Vitor enfrentaria “as Grandes Verdades Fundamentais do Homem e da Vida, para que, enfim, após o expurgo das Ilusórias Impurezas, você possa retornar sendo um Homem Maior”, como lhe disse seu cunhado meio bêbado. Vitor, sentindo os primeiros efeitos da poção, assentiu inocentemente: “Tá bom.”

Belas palavras, muito simbólicas. Mas certas experiências costumam ser muito pessoais e subjetivas, e agora, no caso de Vitor, as palavras de seu solícito cunhado trazem as distantes lembranças de sua vida passada, anterior à sua liberdade cigana: a namorada que tanto fingia amá-lo; a discussão com o porteiro; a carteira que era sempre perdida; o gato com fome; um conto sobre um potencial suicida... A Dissertação Final.

Transtornado, Vitor tenta afastar a temível lembrança meditando com alguns mantras lidos na orelha de uma revista. Num primeiro instante, parece funcionar. Mas a ameaça é avassaladora e o toma por completo. Como que empurrado por uma força desconhecida, ele se ergue e grita desesperado: “Mas eu não lembro a pergunta!”

Sua voz parece perder-se na imensidão deserta de terra, lua e estrelas silenciosas. Porém, aos poucos, eis que surge um certo Eco respondendo: “à parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances [e contos] porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro.”

Vitor deixa o corpo cair e fica imóvel. “Valeu” ele sussurra rancoroso. Mas, de repente, o véu da realidade parece dilatar-se e contrair-se ao mesmo tempo.  Vitor é atravessado por um súbito espasmo e solta um urro pavoroso. Seu corpo se contorce, sua alma se transmuta: de pé, ele incorpora um professor palestrante de voz profunda. Em seguida, suspira confiante e inicia:  

- Em primeiro lugar, é necessário entender como diferem a produção da verdade no conto e no mundo real: ambas são formas de apreensão lingüística de uma mesma realidade objetiva, e construções discursivas articuladas a partir de moldes ideológicos semelhantes, produzindo representações e, enfim, realidades simbólicas. Contudo, o modo de apreensão e, sobretudo, o espaço simbólico onde se efetiva a sistematização discursiva da realidade objetiva são diferentes no conto e no “mundo real.”

Vitor puxa orgulhosamente um bigode imaginário.

- No dito “mundo real”, a realidade objetiva é a série de intermináveis dinâmicas coexistindo e acontecendo simultaneamente num universo. – Vitor lembra-se de já ter dito isso alguma outra vez. – É impossível, porém, produzir uma verdade que seja capaz de apreender a totalidade dessa constância, desse movimento, pois seria algo intrinsecamente paradoxal, algo como tentar parar o tempo para ver sua passagem... Assim, as “verdades reais” estão sujeitas às mudanças de sua matriz, e o discurso real acaba sendo sempre aproximativo, mas nunca definitivo ou, de fato, real.

Por outro lado – continua lentamente, após rápida ponderação - o espaço simbólico onde se efetiva essa sistematização discursiva está diretamente relacionado com o espaço real objetivo que a produz. Certo, a apreensão pode sofrer, e certamente sofre, diversas filtragens determinadas por questões circunstanciais, ideológicas, individuais, coletivas etc. Contudo, seja a partir do sistema ideológico que a justifica (portanto, mentiras institucionalizadas estão valendo!), ou até da própria arbitrariedade do signo lingüístico que a nomeia, a verdade do “mundo real” possui, de uma forma ou de outra, um correlato real objetivo ao qual está forçosamente ligada e comprometida a representar. Portanto, ela possui um caráter e um impacto sensível, pois ela se efetiva, ela “vem a ser” discursivamente, bem ou mal, no real objetivo.

Um chacal uiva distante. Vitor toma um susto afetado de acadêmico, mas sem jamais perder a gravidade, ele prossegue:

- Já, no conto, ou no “mundo literário”, estes fenômenos submetem-se a outras regras. De fato, ocorre a apreensão da mesma realidade objetiva, há uma produção discursiva para sistematizá-la etc. Porém, neste caso, há uma grande diferença: a apreensão não sofre com a inapreensível e constante “mutabilidade” do real objetivo. De tal forma, que a realidade no conto possui uma temporalidade única, com começo, meio e fim formalmente delimitados. Assim, a verdade no conto estaria preservada por ser imutável. A realidade produzida nesse tempo estende-se no infinito, numa eterna repetição: ela será sempre... Aquilo.

De braços esticados, Vitor contempla longamente os astros. Eles devem ter um brilho particularmente bonito para ele esta noite.  

- Enfim – ele retoma – o espaço simbólico onde ocorre a produção da realidade de um conto, não está inteiramente comprometida aos seus correlatos reais. Isto se deve ao fato de que o conto, ao produzir sua realidade, apenas serve-se de elementos reais, articulando-os, no entanto, num espaço imaginário. A ação efetivada nesse espaço não ocorre objetivamente na realidade, mas sim numa realidade imaginária sustentada simbolicamente por elementos reais. Evidentemente, há contos sobre fatos, pessoas e coisas reais. Porém, eles não deixam de ser representações ocorrendo num espaço imaginário onde esse determinado “real” é rearticulado literariamente.

E é justamente aí – ele diz enquanto senta triunfante – que se encontra a noção bastante subjetiva de “confortável sensação” anunciada pela Ecoante afirmação de outrora: a realidade do conto, isto é, o mundo por ele produzido é um discurso sistematizando uma realidade espacial e temporalmente delimitada, que não está forçosamente comprometida e sujeita às mudanças sensíveis da realidade objetiva. Ou seja, é um espaço discursivo imaginário de manifestação da realidade; relativamente familiar, pois se serve de elementos reais em sua elaboração; e seguro, pois seu discurso não está sujeito a uma transformação estrutural, mas sim, no máximo, a reinterpretações, isto é, meros discursos sobre o discurso...

Esta última afirmação desconcerta o palestrante incorporado. Ele matuta.

- Espere aí... Suponhamos que...

Mas antes de concluir, ele dispara numa corrida frenética em direção a um rochedo alto, escalado furiosamente em apenas alguns segundos. No topo da pedra gigante, logo na beirada, Vitor sente-se capaz de ver as coisas com clareza. A paisagem se estende em silêncio. Em algum lugar, os ciganos o aguardam.

- Agora sim! Suponhamos que a beira deste penhasco é, na verdade, como no conto de Sérgio Sant’Anna, a marquise do 18º andar de um prédio sendo utilizada por um limpador de janelas. Eu sou o limpador, à minha volta há prédios e lá na rua, passa a população ocupada com seus afazeres cotidianos. Eu não estou fazendo absolutamente nada: só fumando um cigarro. No entanto, as pessoas da rua começam a me olhar e a interpretar minhas ações e logo, por alguma razão, torno-me um potencial suicida.

Fica evidente, em primeiro lugar, que até minha inação produz, invariavelmente, um sentido. Esse sentido, por sua vez, é sucessivamente definido e posto em prova através de diferentes ordens do discurso representando diversas formas e áreas do conhecimento institucionalizado, como a filosofia, a psicologia, o misticismo religioso etc. Eu sou construído, desconstruído, representado e atravessado por esses vários poderes discursivos que, a priori, representam formas legítimas e convencionadas de produção de conhecimento. Entretanto, eu não efetivei conscientemente nenhuma ação que pudesse vir a ser apreendida como uma tentativa de suicídio. Trata-se de um enorme engano... E ainda assim, os discursos, sem medo algum, a partir de somente alguns elementos reais e de várias conjeturas ideológicas institucionalmente sustentadas, sistematizam e representam a apreensão subjetiva da realidade presente de um suposto suicida, no caso, eu.

E através da articulação discursiva desses poucos elementos apreendidos a meu respeito, minha realidade, minha própria ideologia existencial, se vê subvertida. As próprias condições precárias de minha vida operária, por exemplo, que antes representavam meros fatos imediatos e indiscutíveis com os quais tinha lidar no presente de meu cotidiano, adquirem um novo sentido respondendo à minha recém-nascida ideologia suicida: a necessidade de batalhar para viver torna-se, pela primeira vez, o motivo pelo qual se abandona a batalha da vida.

Tudo depende do ângulo com que se encara a coisa... – ele pronuncia, apontando um enfático indicador para o alto. - O que me leva a concluir que, claramente, eu não estou produzindo minha realidade, eu não “venho a ser” fenomenologicamente através de minhas ações e de meu próprio discurso. Pelo contrário, estou sendo o produto dos discursos e, simultaneamente, seu objeto e instrumento de análise. Meu cogito ergo sum cartesiano foi substituído por um exacerbado esse est percipi berkeleyano onde sou sempre o objeto percebido e nunca o agente que o percebe.

Até aí, posso afirmar que eu não existo. Sou somente aquilo que o discurso me faz ser e, agora, o discurso faz de mim um suicida. Porém, eu ainda não saltei, ainda não cedi minha vida a poder discursivo algum. E diante minha inação, de minha relutância em efetivar uma ação institucionalmente enquadrada, as produções discursivas se empilham umas sobre a outras e tornam-se meros sistemas simbólicos convencionados, articulando seus constituintes de tal forma a justificarem a realidade em função de seus interesses ideológicos, ainda que esta mesma realidade jamais venha a ocorrer.

É este, na verdade, o grande paradoxo de toda minha situação: eu não produzo uma ação e, não obstante, minha inação suscita uma série de apreensões e produções discursivas contraditórias, complementares, etc. E, ainda assim, atravessado por todos esses discursos, nenhum deles é capaz de representar uma verdade indiscutível.

No fim, sou eu quem atravessa o discurso: não sou nenhum deles. Aliás, é por isso que sou encaminhado ao hospício, esse no man’s land institucional para quem não se enquadra nas ordens institucionalizadas do discurso, ainda que seu discurso individual seja perfeitamente capaz de lidar com a realidade objetiva... Isto é, um louco. – uma breve pausa melancólica. – É... Bem que o Foucault já dizia...

O sol nasce vagarosamente numa belíssima paleta de cores. Vitor boceja.

- A partir destas reflexões, ao se considerar a verdade do conto como somente uma produção discursiva respondendo a critérios de apreensão e sistematização ideologicamente orientados, não resta, de fato, nem o ilusório conforto das verdades no “real imaginário” da literatura: o “mundo” produzido no conto é mais volátil do que um discurso produzido num espaço real objetivo. Além de ser outra mera convenção simbólica, sua realidade se produz num espaço imaginário, ou seja, ela não se efetiva sensivelmente. E isto só contribui para o caráter ilusório e traiçoeiro do conto: ele “vem a ser” num espaço simbólico imaginário e, por isso mesmo, pode produzir qualquer construção discursiva sem inquietar-se com seu conteúdo, pois a realidade produzida nesse espaço não precisa estar inteiramente comprometida com a realidade objetiva, podendo, inclusive, servir-se dela de forma bastante indiscriminada, pois, ultimamente, ela será justificada pela própria ordem do discurso do conto e a instituição literária.

Há, todavia, uma verdade indiscutível: apesar do sistemático questionamento da realidade, há uma realidade sendo produzida para que ocorra esse questionamento...

O palestrante parte, enfim, deste plano para o melhor. Agora, resta apenas Vitor, satisfeito e exausto, sonhando acordado com os braços de sua noiva enquanto inicia a descida do rochedo. Mas, de repente, ele pára, dá meia volta e retorna à sua marquise imaginária: “Na verdade, agora se instala uma dúvida em mim: o que ocorreria se a ação do limpador tivesse se realizado? Que discurso prevaleceria?” E cansado, sem refletir muito sobre as implicações sensíveis de suas dúvidas, Vitor salta do penhasco.

Ele jamais soube a resposta, mas foi encontrado estatelado no chão por sua família cigana. Vitor não se tornara um Homem Maior, segundo os costumes, mas foi com todas as honras ciganas e com o choro inconsolável de sua esposa recém-viúva que o enterraram sob o críptico epitáfio: “Aqui realmente jaz Vitor?”   




BIBLIOGRAFIA


BERKELEY, George. Os Pensadores. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. São Paulo: Nova Cultural Ltda, 2005.

DESCARTES, René. Discours de la Méthode. Paris: Garnier Flammarion, 2000. 

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de setembro de 1970. 15ª Ed. São Paulo: Ática, 2007.

SANT'ANNA, Sérgio. A senhorita Simpson: histórias. São Paulo : Companhia das Letras, 1989.

SARTRE, Jean-Paul. L’existentialisme est un humanisme. Gallimard, 1996.




  

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