domingo, 12 de fevereiro de 2012

Feminismo da periferia, por Debora Diniz





São mulheres anônimas, como a espancada na Praça Tahrir, que iniciam e simbolizam as resistências políticas.

O corpo semidesnudo da mulher egípcia é anônimo. Arrastado por policiais na Praça Tahrir, no Cairo, seu dorso foi exposto ao mundo. Um corpo já frágil, marcado por várias camadas de signos culturais: a abaya negra, longa túnica que cobre os contornos da sensualidade feminina, foi rompida e serviu de rede para carregá-la enquanto era espancada pelos policiais. O chute em seus seios indicava o ódio às mulheres que lutam pela igualdade. Além da força física, a violência policial se move por uma linguagem patriarcal repressiva: conter uma mulher manifestante exige um vocabulário sexual de opressão. O corpo exposto da mulher egípcia é uma violação de sua intimidade, mas também de um território religioso de pertencimento. O corpo de uma muçulmana é mais do que as fronteiras de sua existência, por isso a abertura da abaya para o mundo foi tão aterrorizante.

Há algo de paradoxal na cena, além do horror da violência. Para os países não muçulmanos, a abaya, o véu, a burca e todas as variações culturais de disciplinamento do corpo feminino pelo vestuário são sinais da opressão às mulheres. A verdade é que esses julgamentos culturais são bem mais complexos do que o simples reflexo em um espelho narcísico. O inquietante da cena está em reconhecer nessa mesma mulher disciplinada pela cultura religiosa a potência da resistência feminista à mão armada do Estado. Muita coisa mudou de Rosa Parker, a mulher negra que se recusou a sentar-se no lado segregado do ônibus em 1955 nos Estados Unidos, à mulher egípcia da Praça Tahrir, no Cairo, em 2011. Mas parece haver uma longa permanência nessas histórias. São mulheres anônimas as que iniciam e simbolizam as resistências políticas.

Essa longa permanência da luta política repleta de mulheres anônimas é também o que caracteriza o feminismo. Simone de Beauvoir foi a líder intelectual das mulheres burguesas que buscavam inspiração para a política feminista num tempo em que a França era um império da intelectualidade acadêmica. O giro geopolítico para os Estados Unidos fez com que as novas intelectuais do feminismo se expressassem em inglês. Foi daí que Judith Butler, a intelectual de uma geração de feministas queer e fora da norma heterossexual, saiu de seu gabinete na Universidade da Califórnia e discursou por alguns minutos no movimento Ocupe Wall Street, em Nova York. Com as tecnologias digitais, Butler percorreu o globo em poucos dias.

Butler não falou apenas para as mulheres, nem se lançou como a intelectual feminista do movimento. Falou em igualdade, fome e justiça. “Se esperança é uma demanda impossível, então nós estamos pedindo o impossível”, dizia Butler. A esperança, um conceito ao mesmo tempo cristão e ordinário, foi a tradução encontrada para igualdade. O impossível é uma ironia concreta: o fim da desigualdade, seja ela econômica, racial ou sexual, era o que movia os ocupantes de Wall Street. Butler foi recebida por milhares de jovens mulheres que havia semanas ocupavam a principal tribo do capitalismo global no Parque Zuccotti. O coro às suas palavras era “nós, o povo”. De uma visitante do movimento, Butler foi ascendida à intelectual do feminismo igualitarista por jovens mulheres que jamais concordariam com suas ideias sobre sexualidade.

Se Butler é a feminista dos livros e das universidades, a mulher egípcia de abaya desnuda é a feminista que nos move pela igualdade em uma longa permanência histórica. A mulher egípcia é uma feminista – um título que nos causa estranheza, dada a agenda branca, liberal, secular e burguesa que acompanha o movimento feminista no último século. Ela é a feminista de uma sociedade global em que as mulheres usam véu para reclamar igualdade e são protegidas por um cordão de homens para garantir o protesto contra a polícia. Feminismo não é apenas um nome que qualifica nossas vozes e existências, mas um substantivo sobre como se lançar no mundo patriarcal marcado por diferentes nuances de opressão às mulheres.

A verdade é que o feminismo que nasce do corpo de quem sofre a opressão – as mulheres das periferias, sejam elas da praça de Cairo ou do capitalismo global – é o que ferozmente rompe o silêncio da desigualdade. Minha hipótese é que sempre foi assim – só que hoje as histórias anônimas são rapidamente vistas e contadas pelas novas tecnologias digitais. Elas se lançam no horizonte político sem intermediárias: o corpo da mulher do Cairo é agora a imagem do movimento egípcio pelo fim da violência policial contra as mulheres. Do feminismo letrado de Beauvoir à esperança performática de Butler, a grande permanência do feminismo é a convicção das mulheres anônimas de que o patriarcado, a desigualdade e a violência de gênero são inaceitáveis.

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Mais um agradecimento á nossa colaboradora N.F.!

*Debora Diniz - ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UnB E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

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