domingo, 26 de fevereiro de 2012

Entrevista com Zygmunt Bauman para o Fronteiras do Pensamento




O filósofo, sociólogo e ensaísta polonês Zygmunt Bauman (Poznán, 1925) iniciou sua carreira acadêmica na Universidade de Varsóvia. Em 1968 foi obrigado a abandonar a Universidade e tem seus artigos e livros censurados. Após passar pelo Canadá, Estados Unidos e Austrália, chega à Inglaterra onde assume em 1971 o cargo de professor titular da Universidade de Leeds. Nesta época entrou em contato com o islandês Ji Caze, filósofo que exerceu uma forte influência em seu pensamento. Em 1989 recebeu o prêmio Amalfi, por sua obra “Modernidade e Holocausto” e em 1998 recebeu a premiação Adorno, pelo conjunto de sua obra. Atualmente Bauman é professor emérito de sociologia das Universidades de Leeds e de Varsóvia. Uma boa parte de sua obra já foi traduzida aqui no Brasil. Dentre elas destacam-se: Modernidade e Holocausto, Amor Líquido, Vida Líquida, Vidas Desperdiçadas, entre outras.

Bauman é principalmente conhecido por elaborar e desenvolver a idéia de “Modernidade Líquida”. Na introdução de uma das suas obras mais conhecidas, “Vida Líquida”, descreve de forma pungente os aspectos e processos que constituem o que ele chama de “sociedade líquido-moderna”.

“vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo.

Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente. Por essa razão, aprender com a experiência a fim de se basear em estratégias e movimentos táticos empregados com sucesso no passado é pouco recomendável: testes anteriores não podem dar conta das rápidas e quase sempre imprevistas (talvez imprevisíveis) mudanças de circunstâncias. Prever tendências futuras a partir de eventos passados torna-se cada dia mais arriscado e, freqüentemente, enganoso. É cada vez mais difícil fazer cálculos exatos, uma vez que os prognósticos seguros são inimagináveis: a maioria das variáveis das equações (se não todas) é desconhecida, e nenhuma estimativa de suas possíveis tendências pode ser considerada plena e verdadeiramente confiável.

Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las.

Como diz o cartunista Andy Riley, do Observer, o que aborrece é “ler artigos sobre as maravilhas de se largar tudo, em busca de melhor qualidade de vida, quando ainda nem se alcançou o tudo”. É preciso acelerar o “alcançar”, caso se deseje provar das delícias do “largar”. Preparar o local para o “largar” confere significado ao “alcançar”, que se torna seu principal propósito. É pelo alívio trazido por um “largar” suave e indolor que se julga, em última instância, a qualidade do “alcançar”...

A instrução de que mais necessitam os praticantes da vida líquido-moderna (e que mais lhes é oferecida pelos especialistas nas artes da vida) não é como começar ou abrir, mas como encerrar ou fechar. Outro colunista do Observer, em tom meio irônico, lista as últimas regras para se “chegar ao fim” das parcerias (sem dúvida os episódios mais difíceis de serem “encerrados”, principalmente aqueles que os parceiros desejam e lutam muito para que acabem, os quais provocam, sem surpresa alguma, uma demanda particularmente ampla pela ajuda de especialistas). A lista começa com: “Lembre-se das coisas ruins. Esqueça as boas”; e termina com: “Conheça outra pessoa”, depois de passar por “apague toda a correspondência eletrônica”. Do princípio ao fim, a ênfase recai em esquecer, apagar, desistir e substituir.

Talvez a descrição da vida líquido-moderna como uma série de reinícios seja um cúmplice desavisado de algum tipo de conspiração. Replicar uma ilusão compartilhada ajuda a ocultar seu segredo mais íntimo (vergonhoso, ainda que apenas um resíduo). Talvez, uma forma mais adequada de narrar essa vida seja contara história de sucessivos finais. E talvez a glória de uma vida líquida de sucesso seja mais bem transmitida pela invisibilidade das tumbas que assinalam seu progresso do que pela ostentação das lápides que celebram os conteúdos dessas tumbas.

 Numa sociedade líquido-moderna, a indústria de remoção do lixo assume posições de destaque na economia da vida líquida. A sobrevivência dessa sociedade e o bem-estar de seus membros dependem da rapidez com que os produtos são enviados aos depósitos de lixo e da velocidade e eficiência da remoção dos detritos. Nessa sociedade, nada pode reivindicar isenção à regra universal do descarte, e nada pode ter permissão de se tornar indesejável. A constância, a aderência e a viscosidade das coisas, tanto animadas quanto inanimadas, são os perigos mais sinistros e terminais, as fontes dos temores mais assustadores e os alvos dos ataques mais violentos.

A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se (leia-se: ir em frente despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento e desmantelamento, repelindo as identidades que atualmente estão sendo montadas e assumidas) ou perecer. Cutucada pelo horror da expiração, a vida na sociedade líquido-moderna não precisa mais ser empurrada pelas maravilhas imaginadas no ponto final dos trabalhos modernizantes. A necessidade aqui é de correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários.

“Destruição criativa” é a forma como caminha a vida líquida, mas o que esse termo atenua e, silenciosamente, ignora é que aquilo que essa criação destrói são outros modos de vida e, portanto, de forma indireta, os seres humanos que os praticam. A vida na sociedade líquido-moderna é uma versão perniciosa da dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no lixo. E com a competição se tornando global a corrida agora se dá numa pista também global.
(Bauman, em “Vida Líquida”, 2007)

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Fronteiras do Pensamento é um seminário internacional dirigido ao grande público com alguns dos mais representativos intelectuais da cena mundial contemporânea.

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