segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Passo Dúbio: corpo e movimento na pós modenidade.




Ouço dubstep.

É música eletrônica, descendente do breakbeat e drum and bass. O som da dissociação, rebento do mal estar da pós-modernidade, cadência impiedosa do quotidiano ritmado pelo incessante encontro e penetração da tecnologia nos sentidos e nos corpos. Saturados e cortantes, o ritmo e as sonoridades são exacerbadas e repetidas, formando e falando a língua áspera dos sons artificiais num diálogo mutante com nossos sentidos. Melodias e sons do sopro de um tubo de catodo ou um campo de diodos, o ranger de corpos robóticos se transformando em máquinas ou os gritos estridentes das velhas e massivas impressoras bege. Isso, junto a baixos e bases ecoando o estilo do Dub jamaicano, fazem o dubstep.


A música é construída usando referenciais sonoros oriundos e desenvolvidos ao longo da história da mídia áudio-visual, cibernética e musical desde a eletrificação do som. São sons que se originaram em programas de televisão, vídeo games, desenhos animados, alarmes, máquinas robotizadas, programas de computador; e, enfim, as próprias música eletrônica e dub. Ao escutar, percebo essas referências e concebo um universo de sonoridades vindas do nosso mundo técnico, integrado ao nosso cotidiano fônico, e que constitui o conjunto sonoro utilizado pelo dubstep. A música surgida dessas condições conta a história de como parecemos perceber, dar sentido e dialogar com o mundo tecnológico que nos atravessa.

“Nada de novo” dirão os fãs de Kraftwerk, primeira banda cujo conceito era tanto a representação da alienação do indivíduo na modernidade quanto a celebração da união entre humano e tecnológico. A estética e música eletrônica minimalista e experimental do Kraftwerk resultaram dos anseios por um ideal moderno de futuro pós II Guerra Mundial, onde a primazia da técnica e o uso da tecnologia seriam responsáveis por um porvir galáctico glorioso, pagando somente o preço das externalidades e dos efeitos colaterais da civilização à Ocidental.   

Contudo o dubstep não tem manifesto. Não há um movimento ideológico, ou texto, norteando o desenvolvimento da música a não ser os agenciamentos da indústria fonográfica, das produtoras independentes, internet e músicos. Sua estética não se originou de uma proposta artística premeditada que visava representar um futuro idealizado. O futuro do dubstep se encontra no agora: a indumentária, as performances coreográficas e a construção do próprio som significam nossas relações concretas com um mundo de alta complexidade tecnológica, liquefação das instituições sociais, cosmopolitismo e nenhuma leitura ideológica sócio-política que se proponha a discutir arte e estética.  

Nesse futuro não há mais uma simples e estilizada autobahn vazia, a emblemática capa do primeiro disco do Kraftwerk. O que temos são imagens em alta resolução de ruas em megalópoles superpovoadas, congestionadas de sujeitos polifônicos em constante procura do tempo/trabalho e dinheiro  perdido. É o cenário, aliás, em que nasce o dubstep, o sul de Londres, um conjunto de vários bairros que forma um espaço urbano de encontro entre a população branca inglesa e a negra do caribe. Esse conjunto de bairros não só tem alta densidade demográfica, como também são parte da cidade onde há o maior numero de câmeras de vigilância pública do mundo.

Ao imaginar as ruas, penso em como deve ser vivê-las, o estalo de seu asfalto na sola do sapato, o frio na cara, os odores das especiarias usadas em restaurantes jamaicanos, os olhares autômatos. Como são os corpos dos residentes dessas ruas? Li em um artigo um parágrafo bastante ilustrativo:

David Le Breton afirma, com razão, que o desenvolvimento da cidade teve uma conseqüência significativa sobre os usos e representações sociais. A socialização proxêmica das cidades impôs as suas regras: ver sem olhar, devido a utilização maciça de películas em vidros; ouvir sem escutar, graças ao ruído dos carros; cheirar sem perceber o cheiro, resultado da poluição. O desenho das cidades e dos espaços públicos tem provocado uma notável redução da capacidade dos sentidos para compreender o mundo que nos rodeia, o que limita as nossas percepções e apreciações do outro/a. O olhar dos cidadãos enfrenta paredes vivas e ângulos. 'Os espaços públicos e apartamentos limitam a visão. Nestes espaços do corpo, a soma de necessidades arbitrariamente definida é reduzida, o corpo assumindo uma forma de existência pura, sem história, sem qualidades, como simples volume'.

O dubstep encarna na performance de suas coreografias esses estados do corpo. Ser simples volume ahistórico, ou espaço agenciado pelo bricolage identitário faz parte da forma e processo de subjetivação imposto por determinadas condições da inter e intrasubjetividade pós-moderna. Como uma memória flash ou um aparelho doméstico, no mundo do hipertempo e hiperespaço nossa identidade está para além da matriz biológica, atravessada pela tecnologia que criamos para superar nosso próprio corpo. 

Assim sendo, ao assistir o clipe no começo deste post, posso relacionar os movimentos executados, por exemplo, à reprodução de movimentos em câmera lenta ou a ilusões óticas devidas à luz estroboscópica, ocorrendo num corpo sem ossos, plástico, que ao mesmo tempo é capaz de reproduzir ângulos improváveis, deslocando-se como uma máquina de alta precisão no solo de uma fábrica. Essa dualidade marcada entre possibilidades antagônicas de movimento faz surgir algumas reflexões .

A primeira, e mais evidente, é a que vem da metáfora maquínica do corpo. Sustentada pelas instituições biomédicas que o agenciam e controlam - desde a formalização das disciplinas anatomo-fisiológicas e a institucionalização do seus saberes - não é difícil entrever a agência de seus dispositivos na construção e execução da coreografia. O corpo daquele ou daquela que dança, se afasta das construções e execuções gestuais do cotidiano, buscando emular a precisão, deslocamento e minimalismo da cinética robótica.

O desenvolvimento que sugiro para essa idéia extrapola a analogia anterior das performances corporais maquínicas, propondo uma relação de interdependência entre o corpo em dança e a construção de subjetividade. Tanto a fluidez quanto a exatidão dos movimentos das  performances coreográficas parecem estar relacionadas ao fenômeno da construção da subjetividade na pós-modernidade. Tanto a oposição entre liquefação e cristalização dos parâmetros biológicos do corpo, quanto a ambigüidade e transitoriedade da construção da identidade, podem ser relacionadas às posturas corporais e subjetivas esdrúxulas, e as des/re/construções identitárias, exigidas por nosso cotidiano. 

Finalmente, cabe fazer o caminho contrário e deixar a reflexão para os leitores: apesar dessa maquinização do corpo, não há, bem ou mal, um retorno a ele? Para poder executar as coreografias complexas do dubstep, aquela/e que as executa precisa possuir uma compreensão e intimidade inigualável com seu próprio corpo, seu potencial, deslocamento e seus limites de mimese. Portanto, esse ato de (re)conhecimento, para além do discurso, não é um retorno ao corpo? Retorno que ocorre graças a interiorização da máquina?  

Instala-se a aporia. Sublime-a dançando.

---

Obrigado A.V.L.N. pelo título!

Nenhum comentário:

Postar um comentário