Ouço dubstep.
É música eletrônica,
descendente do breakbeat e drum and bass. O som da dissociação,
rebento do mal estar da pós-modernidade, cadência impiedosa do quotidiano
ritmado pelo incessante encontro e penetração da tecnologia nos sentidos e nos
corpos. Saturados e cortantes, o ritmo e as sonoridades são exacerbadas e
repetidas, formando e falando a língua áspera dos sons artificiais num diálogo
mutante com nossos sentidos. Melodias e sons do sopro de um tubo de catodo ou
um campo de diodos, o ranger de corpos robóticos se transformando em máquinas
ou os gritos estridentes das velhas e massivas impressoras bege. Isso, junto a
baixos e bases ecoando o estilo do Dub jamaicano, fazem o dubstep.
A música é construída usando referenciais
sonoros oriundos e desenvolvidos ao longo da história da mídia áudio-visual, cibernética
e musical desde a eletrificação do som. São sons que se originaram em programas
de televisão, vídeo games, desenhos animados, alarmes, máquinas robotizadas,
programas de computador; e, enfim, as próprias música eletrônica e dub. Ao
escutar, percebo essas referências e concebo um universo de sonoridades vindas
do nosso mundo técnico, integrado ao nosso cotidiano fônico, e que constitui o
conjunto sonoro utilizado pelo dubstep. A música surgida dessas condições conta
a história de como parecemos perceber, dar sentido e dialogar com o mundo tecnológico
que nos atravessa.
“Nada de novo” dirão os fãs
de Kraftwerk, primeira banda cujo conceito era tanto a representação da alienação
do indivíduo na modernidade quanto a celebração da união entre humano e
tecnológico. A estética e música eletrônica minimalista e experimental do
Kraftwerk resultaram dos anseios por um ideal moderno de futuro pós II Guerra
Mundial, onde a primazia da técnica e o uso da tecnologia seriam responsáveis
por um porvir galáctico glorioso, pagando somente o preço das externalidades e
dos efeitos colaterais da civilização à Ocidental.
Contudo o dubstep não tem
manifesto. Não há um movimento ideológico, ou texto, norteando o
desenvolvimento da música a não ser os agenciamentos da indústria fonográfica, das
produtoras independentes, internet e músicos. Sua estética não se originou de
uma proposta artística premeditada que visava representar um futuro idealizado.
O futuro do dubstep se encontra no agora: a indumentária, as performances
coreográficas e a construção do próprio som significam nossas relações concretas
com um mundo de alta complexidade tecnológica, liquefação das instituições
sociais, cosmopolitismo e nenhuma leitura ideológica sócio-política que se
proponha a discutir arte e estética.
Nesse futuro não há mais uma simples
e estilizada autobahn vazia, a emblemática
capa do primeiro disco do Kraftwerk. O que temos são imagens em alta resolução
de ruas em megalópoles superpovoadas, congestionadas de sujeitos polifônicos em
constante procura do tempo/trabalho e dinheiro perdido. É o cenário, aliás, em que nasce o dubstep, o sul de
Londres, um conjunto de vários bairros que forma um espaço urbano de encontro
entre a população branca inglesa e a negra do caribe. Esse conjunto de bairros
não só tem alta densidade demográfica, como também são parte da cidade onde há
o maior numero de câmeras de vigilância pública do mundo.
Ao imaginar as ruas, penso em
como deve ser vivê-las, o estalo de seu asfalto na sola do sapato, o frio na
cara, os odores das especiarias usadas em restaurantes jamaicanos, os olhares
autômatos. Como são os corpos dos residentes dessas ruas? Li em um artigo um
parágrafo bastante ilustrativo:
“David Le Breton afirma, com razão,
que o desenvolvimento da cidade teve uma conseqüência significativa sobre os
usos e representações sociais. A socialização proxêmica das cidades impôs as
suas regras: ver sem olhar, devido a utilização maciça de películas em vidros;
ouvir sem escutar, graças ao ruído dos carros; cheirar sem perceber o cheiro,
resultado da poluição. O desenho das cidades e dos espaços públicos tem
provocado uma notável redução da capacidade dos sentidos para compreender o
mundo que nos rodeia, o que limita as nossas percepções e apreciações do
outro/a. O olhar dos cidadãos enfrenta paredes vivas e ângulos. 'Os
espaços públicos e apartamentos limitam a visão. Nestes espaços do corpo, a
soma de necessidades arbitrariamente definida é reduzida, o corpo assumindo uma
forma de existência pura, sem história, sem qualidades, como simples volume'.
O dubstep encarna na performance de
suas coreografias esses estados do corpo. Ser simples volume ahistórico, ou
espaço agenciado pelo bricolage identitário
faz parte da forma e processo de subjetivação imposto por determinadas
condições da inter e intrasubjetividade pós-moderna. Como uma memória flash ou
um aparelho doméstico, no mundo do hipertempo e hiperespaço nossa identidade
está para além da matriz biológica, atravessada pela tecnologia que criamos
para superar nosso próprio corpo.
Assim sendo, ao
assistir o clipe no começo deste post, posso relacionar os movimentos
executados, por exemplo, à reprodução de movimentos em câmera lenta ou a ilusões
óticas devidas à luz estroboscópica, ocorrendo num corpo sem ossos, plástico,
que ao mesmo tempo é capaz de reproduzir ângulos improváveis, deslocando-se
como uma máquina de alta precisão no solo de uma fábrica. Essa dualidade marcada
entre possibilidades antagônicas de movimento faz surgir algumas reflexões .
A primeira, e mais evidente,
é a que vem da metáfora maquínica do corpo. Sustentada pelas instituições
biomédicas que o agenciam e controlam - desde a formalização das disciplinas
anatomo-fisiológicas e a institucionalização do seus saberes - não é difícil
entrever a agência de seus dispositivos na construção e execução da coreografia.
O corpo daquele ou daquela que dança, se afasta das construções e execuções
gestuais do cotidiano, buscando emular a precisão, deslocamento e minimalismo
da cinética robótica.
O desenvolvimento que sugiro
para essa idéia extrapola a analogia anterior das performances corporais
maquínicas, propondo uma relação de interdependência entre o corpo em dança e a
construção de subjetividade. Tanto a fluidez quanto a exatidão dos movimentos
das performances coreográficas
parecem estar relacionadas ao fenômeno da construção da subjetividade na pós-modernidade.
Tanto a oposição entre liquefação e cristalização dos parâmetros biológicos do
corpo, quanto a ambigüidade e transitoriedade da construção da identidade,
podem ser relacionadas às posturas corporais e subjetivas esdrúxulas, e as des/re/construções identitárias,
exigidas por nosso cotidiano.
Finalmente, cabe fazer o
caminho contrário e deixar a reflexão para os leitores: apesar dessa
maquinização do corpo, não há, bem ou mal, um retorno a ele? Para poder
executar as coreografias complexas do dubstep, aquela/e que as executa precisa
possuir uma compreensão e intimidade inigualável com seu próprio corpo, seu
potencial, deslocamento e seus limites de mimese. Portanto, esse ato de (re)conhecimento,
para além do discurso, não é um retorno ao corpo? Retorno que ocorre graças a
interiorização da máquina?
Instala-se a aporia. Sublime-a dançando.
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Obrigado A.V.L.N. pelo título!
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