O primeiro problema que se apresenta na inscrição de uma narrativa
acadêmica cujo propósito é a apresentação de um fenômeno qualquer a uma
determinada comunidade discursiva, é a escolha da linguagem e o leque semântico
a ser explorado, o significado que revelará, e invariavelmente, ocultará tal
fenômeno. Muitos não pensarão sobre este ponto de partida e repetirão os
cânones discursivos que controlam, editam, a expressão e comentário da produção
de conhecimento; outros se debruçarão sobre o assunto e escolherão
minuciosamente suas palavras, expressões, estruturas textuais. Como arquitetos
do verbo, estes últimos se empenharão em dar forma a um edifício discursivo onde
a opacidade e a translucidez das palavras/conceitos dará forma aos espaços,
propondo zonas de sentido. Estruturalistas chafurdarão entre seus esqueletos,
enquanto construcionistas sociais farão móbiles de espelhos. Os
desconstrutivistas, bem esses hão de (des)“constr”-[ruir!] castelos de areia,
que são pequenas pedras, que foram grandes pedras, que estão no mar, que é
muita água, entretanto uma água especial, misturada com sal, cloreto, potássio,
vida, mar-mãe-mère-vieillemère-merveille. Nessas horas é inevitável lembrar o
traquinas do Sokal rindo dos rizomáticos Deleuze e Derrida.
Pois bem, propondo uma fuga estratégica de formas e estilos outros,
direi que esta não será uma narrativa acadêmica, e sim um ensaio. Não estou
assim me desviando da necessidade de clareza ou profundidade de conteúdo,
simplicidade e complexidade narrativa, nem justificando uma abordagem
assistemática da minha experiência clínica; desejo simplesmente poder contar o
que ocorre quando sou posto diante de um sujeito que veio buscar algo de mim.
Esse sujeito pode chamar esse algo de entendimento, cura, alívio, esquecimento,
superação, validação, norte, crescimento etc. Ainda não sei dar nome ao que
faço, porém sei que desejo contribuir para que ocorra a reformulação da
narrativa ontológica do sujeito, seja como ele/a queira chamá-lo. No entanto,
se uma definição faz-se necessária, prefiro propor uma imagem, uma rica
projeção de sentidos que se propõe a infinitas construções e
(re)interpretações:
"No meio do caminho de nossa vida / Encontrei-me numa selva obscura / Que a estrada
reta fora perdida."
Assim vejo os sujeitos que chegam a mim, e, como Virgílio, sinto, sem
orgulho nem vaidade, pelo contrario, certa dose de medo, excitação, curiosidade,
constrangimento e esperança, a cada vez que nos encontramos. Sinto-me mais como
um daimon do que um psicólogo, um
espírito que servirá uma função tutelar, de auxílio, para outro espírito. Esta,
infelizmente, é uma analogia que irá gerar problemas, protestos. Em primeiro
lugar por fazer alusão ao personagem oriundo e inscrito nas narrativas
religiosas, míticas e literárias, todas fontes de sentido e performance
subjetiva que não gozam do respaldo acadêmico da psicologia que se pretende uma
ciência nomotética, taxonomista, empirista e utilitária. Mesmo entre
psicanalistas esta alusão geraria desconforto. Um triste fato, afinal, pois, se
nos lembrarmos de que Lacan redefine os mecanismos de deslocamento e
condensação do recalque como metafóricos e metonímicos, a poesia e a literatura
se tornam registros privilegiados de diálogo com o inconsciente. Em segundo
lugar, retomando o primeiro, porque boa parte das escolas da psicologia ainda
anda às turras com seu projeto de ser uma ciência exata, isomórfica, que tem
como objetivo revelar uma realidade última, ou essência, da mente, psique ou
consciência. Isso faz com que certos cânones metodológicos tornem árida e
limitada a escolha de referências bibliográficas, reduzindo assim as fronteiras
de diálogo interdisciplinar, invariavelmente levando a psicologia a tornar-se
um campo discursivo e performático cada vez mais auto-referencial e
tautológico.
Entretanto, para chegar a fundamentar minha abordagem com uma metáfora
como a de Virgílio, foi necessária toda uma (des)construção teórica prévia. Não
posso negar que uma parte perceptível da minha performance clínica advém de uma
ancestralidade psicanalítica e analítica (Jung), não porque seja adepto das
correntes, mas porque no deserto de perspectivas oferecidas durante minha
graduação em psicologia, essas eram as únicas correntes de pensamento que
ofereciam uma brecha razoável para se pensar a si e ao outro com alguma
referência plausível a um fenômeno subjetivo preponderantemente qualitativo.
Sei bem que tanto Freud como Jung foram homens de seu tempo, declaração que
contém tanto um elogio quanto uma crítica a como conduziram o desenvolvimento
de suas respectivas teorias e práticas. Dito isso, creio não precisar entrar em
seus deméritos teóricos e práticos, muito bem apresentados pelos professores
Neubern e Rey, preferindo dizer que aquilo que tomei de valioso de ambas as
escolas foi a coragem, face a um mundo cada vez mais calcado sobre parâmetros
quantitativos, de pensar o outro como um fenômeno complexo e sofisticado sobre
o qual é possível construir sentidos, perceber e propor configurações, sem
necessariamente recorrer a conceitos oriundos de contextos discursivos
estritamente experimentais e/ou biomédicos, preservando ainda um bom grau de
lirismo e especulação filosófica.
Não precisar recorrer a uma grande parte do discurso gerado pelo
conhecimento “científico” psicológico, ou psicanalítico, sem dúvida permite
maiores graus de liberdade e perspectivas clínicas ao se abordar a
subjetividade. Entretanto minha proposta não se arvora em um relacionismo radical (Gergen), apesar de considerar válida, e
fundamental, a critica às construções da ciência dominante e a proposta, e
busca, do desenvolvimento de formas alternativas de pesquisa, como sugerido
pelos construcionistas sociais. Assim surge, imperiosa, uma demanda dessa
quebra com alguns dos conceitos das disciplinas psi: um novo arcabouço
metodológico. É nesse espaço que as ciências humanas que estudei,
principalmente a antropologia e o método etnográfico, vem suprir a demanda não
só de um quadro referencial como também de ferramentas para a observação do
outro, o sujeito que me interpela. Esse deslocamento e empréstimo metodológico
parte da observação - e não é novidade dizê-lo - de que a psicologia ainda não
superou determinados dilemas metodológicos que outras ciências antropossociais
discutiram a partir da década de sessenta. Devido a esse vácuo
político-discursivo na história da psicologia, parti em busca de uma síntese, e
aglutinação, de certos conceitos das ciências antropossociais que permitissem
nortear minha atuação em um cenário clínico: assim, parto do princípio de que a
subjetividade pode ser compreendida como uma topografia íntima, viva, que pode
ser cartografada e interpelada, das mais diferentes formas, a produzir sentidos
acerca de si. Empreende-se, portanto, uma viagem onde nativo e viajante se
tornam autores, atores e platéia de uma narrativa cujo objetivo é promover
novas configurações de território.
Esmiuçarei o significado das últimas duas frases, já que a comparação da
subjetividade a um território a ser mapeado pode causar algumas confusões
conceituais; no entanto devo avisar que esta construção de sentido não
necessariamente passa pela reapresentação de certos autores, cânones teóricos e
as decorrentes reconfigurações de seus conceitos, muito pelo contrario:
gostaria que as imagens que a frase suscita, de chofre, sejam privilegiadas
acima de qualquer re-inscrição semântica acadêmica, pois seu significado
metafórico é de muito mais valia que a erudita genealogia dos saberes que
confluem para formá-la. Por outro lado tampouco gostaria que o privilégio à
metáfora fosse considerado uma forma de escamotear uma polimatia; assim será
feita, também, referência aos autores que sustentam o raciocínio por trás das
imagens apresentadas.
Para que a subjetividade seja concebida como um território, não farei o
erro de pressupor que a psique seja uma ilha particular à deriva do continente
social, separada dele pelo mar do corpo biológico e pelas brumas da transcendente
privacidade metafísica da Mente. Isso me levaria a um problema conceitual que
percebo como desnecessário: a separação do objeto e do sujeito (aqui gostaria
de me apropriar das considerações metodológicas feitas por Thomas Csordas em Corpo/Significado/Cura a respeito do
fenômeno religioso, onde ao usar Merleau-Ponty e Pierre Boudieu, Csordas
implode essa dicotomia ao fazer uma ponte, respectivamente, entre o pré-objetivo e o habitus). Ao contrário, percebo a subjetividade muito mais como um
tecido denso e único, de trama variante, onde a interseção dos discursos e as
performances que o formam podem configurar desde um complexo afetivo até uma
instituição, como o Estado. Usei um termo emprestado da matemática – interseção
- porque uma metáfora geológica para estas (re)configurações seria imprecisa,
pois elas não ocorrem por sedimentação ou acúmulo, como o fato social e as
instituições sociais de Durkheim. São mais bem encontros que ocorrem devido ao hasard objectif, conceito proposto por
André Breton, escritor surrealista, que descreve encontros e coincidências que
se rebelam a um continuum lógico e no
entanto parecem ser governadas por algumas forças numinosas, configurações ou
conjuntos perfomático-discursivos dotados de certa autonomia (idéia nada original
que deriva diretamente de algumas considerações feitas por Jung, que achei
interessantes, quando este propõe o conceito de arquétipo). Essa força numinosa não se refere a um fenômeno
misterioso e estritamente intuitivo, já que pode corresponder, e certamente
dialoga em boa relação semântica, com os termos tanto de demônio e sujeito como
definidos por Neubern no glossário de seu livro Complexidade e Psicologia Clínica.
Retomando: território é o tecido que dobra, se sobrepõe, intersecta,
criando uma paisagem cuja topografia se apresenta, e será reapresentada ao
longo da viagem de reconhecimento (interpretação e construção) que será
processo clínico que proporei.
Essa não foi uma alquimia discursiva fácil de ser concebida. Representa
um resumo superficial do que penso a respeito de métodos clínicos, e ainda
estará sob constante reformulação enquanto esteja clinicando. Entretanto, como
de fato se dá minha conduta, pragmaticamente, dentro de um consultório? Percebo
nitidamente que as teorias que absorvo permitem estas e outras reflexões
fundamentais para o esboço de linhas de ação que guiem minhas intervenções;
mas, uma vez posto frente ao Outro, meu modus
operandi se vale muito mais de uma episteme
da espontaneidade, constituída pelas mais variadas referências, do que
efetivamente a execução de técnicas derivadas de um conjunto de postulados
consagrados. Percebo que o conceito supramencionado, episteme da espontaneidade, pode parecer um tanto incerto, afinal
leva em si um problema: como posso dar estatuto de conhecimento válido e fazer
uso sistemático de intervenções que ocorrem como configurações passageiras e
instantâneas?
Posso começar por estabelecer que não é possível executar uma análise
densa e complexa da produção do meu paciente enquanto estou a ouvi-lo. Ela
ocorrerá sempre a posteriori e será
usada como mapa do território do Outro que guiará nossas, as do paciente e
minhas, intervenções e (re)significações. Portanto, dentro do espaço clínico,
invariavelmente estarei reagindo in loco
ao seu discurso e performance, sintetizando em minhas intervenções tudo aquilo
que possivelmente me permita gerar novas zonas de sentido dentro de nosso
território. É nesse ponto que apresento a outra fonte, não discursiva e
teórica, que norteia minha intervenção e de onde se origina o conceito a ser
explicado: meu corpo. Há declaradamente um caráter intuitivo, do não dito, que
permeia a relação clínica e este é encarnado, ou seja, se origina das práticas
sócio-psico-espirituais que foram e são inscritas em meu corpo, que moldam meu
discurso e performance em seus três estados de mente, como propostos por
Pierce. Desde os movimentos afetivos do desejo, minha performance corporal
(postura, respiração, coloratura da voz) até a escolha das imagens que
apresentarei como sínteses e/ou impressões do que me proponho a interpretar e
construir se originam e duram um instante - a expressão de uma configuração que
emerge de uma interação complexa de signos. A analogia que elucida melhor esse
processo é a de um relâmpago: parece ocorrer espontaneamente se não levarmos em
consideração que é o resultado perceptível de uma interação complexa, vigorosa
e quase imperceptível de cátions e ânions que o precede.
Parece-me que esta exposição inicial de como articulo minhas
intervenções clínicas serviu como quadro geral. Comparando certas idéias e
práticas que desenvolvi com o que tenho lido recentemente de Erickson e
Neubern, percebo que há vários pontos onde ocorrem encontros, ampliações,
sugestões e reconstruções conceituais das quais gostaria de me imbuir e
desenvolver. Entre essas se destacam a hipnose e determinados desafios
epistemológicos tais como os que são apresentados por Neubern em seu primeiro
livro. Devo admitir, no entanto, que ainda há muito mais a ser discutido,
perguntas que venho me fazendo relacionadas à; 1) como repensar o setting clínico fora da instituição
física clínica; 2) como melhor articular a produção de afetos que ocorre entre
paciente e psicólogo, usando a interação de seus corpos como fonte de produção
de sentidos; 3) a possibilidade de ter uma relação clínica onde ambos, o
paciente e o psicólogo estão em transe; 4) como desenvolver ferramentas
discursivas de análise e reinterpretação de si e ensiná-las ao paciente; 5)
como utilizar a literatura, e alguns elementos de sua análise, como fonte de
produção de sentidos e reflexão teórica.
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