terça-feira, 9 de outubro de 2012

Minha Confecção Clínica



O primeiro problema que se apresenta na inscrição de uma narrativa acadêmica cujo propósito é a apresentação de um fenômeno qualquer a uma determinada comunidade discursiva, é a escolha da linguagem e o leque semântico a ser explorado, o significado que revelará, e invariavelmente, ocultará tal fenômeno. Muitos não pensarão sobre este ponto de partida e repetirão os cânones discursivos que controlam, editam, a expressão e comentário da produção de conhecimento; outros se debruçarão sobre o assunto e escolherão minuciosamente suas palavras, expressões, estruturas textuais. Como arquitetos do verbo, estes últimos se empenharão em dar forma a um edifício discursivo onde a opacidade e a translucidez das palavras/conceitos dará forma aos espaços, propondo zonas de sentido. Estruturalistas chafurdarão entre seus esqueletos, enquanto construcionistas sociais farão móbiles de espelhos. Os desconstrutivistas, bem esses hão de (des)“constr”-[ruir!] castelos de areia, que são pequenas pedras, que foram grandes pedras, que estão no mar, que é muita água, entretanto uma água especial, misturada com sal, cloreto, potássio, vida, mar-mãe-mère-vieillemère-merveille. Nessas horas é inevitável lembrar o traquinas do Sokal rindo dos rizomáticos Deleuze e Derrida.


Pois bem, propondo uma fuga estratégica de formas e estilos outros, direi que esta não será uma narrativa acadêmica, e sim um ensaio. Não estou assim me desviando da necessidade de clareza ou profundidade de conteúdo, simplicidade e complexidade narrativa, nem justificando uma abordagem assistemática da minha experiência clínica; desejo simplesmente poder contar o que ocorre quando sou posto diante de um sujeito que veio buscar algo de mim. Esse sujeito pode chamar esse algo de entendimento, cura, alívio, esquecimento, superação, validação, norte, crescimento etc. Ainda não sei dar nome ao que faço, porém sei que desejo contribuir para que ocorra a reformulação da narrativa ontológica do sujeito, seja como ele/a queira chamá-lo. No entanto, se uma definição faz-se necessária, prefiro propor uma imagem, uma rica projeção de sentidos que se propõe a infinitas construções e (re)interpretações:


"No meio do caminho de nossa vida / Encontrei-me numa selva obscura / Que a estrada reta fora perdida."

Assim vejo os sujeitos que chegam a mim, e, como Virgílio, sinto, sem orgulho nem vaidade, pelo contrario, certa dose de medo, excitação, curiosidade, constrangimento e esperança, a cada vez que nos encontramos. Sinto-me mais como um daimon do que um psicólogo, um espírito que servirá uma função tutelar, de auxílio, para outro espírito. Esta, infelizmente, é uma analogia que irá gerar problemas, protestos. Em primeiro lugar por fazer alusão ao personagem oriundo e inscrito nas narrativas religiosas, míticas e literárias, todas fontes de sentido e performance subjetiva que não gozam do respaldo acadêmico da psicologia que se pretende uma ciência nomotética, taxonomista, empirista e utilitária. Mesmo entre psicanalistas esta alusão geraria desconforto. Um triste fato, afinal, pois, se nos lembrarmos de que Lacan redefine os mecanismos de deslocamento e condensação do recalque como metafóricos e metonímicos, a poesia e a literatura se tornam registros privilegiados de diálogo com o inconsciente. Em segundo lugar, retomando o primeiro, porque boa parte das escolas da psicologia ainda anda às turras com seu projeto de ser uma ciência exata, isomórfica, que tem como objetivo revelar uma realidade última, ou essência, da mente, psique ou consciência. Isso faz com que certos cânones metodológicos tornem árida e limitada a escolha de referências bibliográficas, reduzindo assim as fronteiras de diálogo interdisciplinar, invariavelmente levando a psicologia a tornar-se um campo discursivo e performático cada vez mais auto-referencial e tautológico.

Entretanto, para chegar a fundamentar minha abordagem com uma metáfora como a de Virgílio, foi necessária toda uma (des)construção teórica prévia. Não posso negar que uma parte perceptível da minha performance clínica advém de uma ancestralidade psicanalítica e analítica (Jung), não porque seja adepto das correntes, mas porque no deserto de perspectivas oferecidas durante minha graduação em psicologia, essas eram as únicas correntes de pensamento que ofereciam uma brecha razoável para se pensar a si e ao outro com alguma referência plausível a um fenômeno subjetivo preponderantemente qualitativo. Sei bem que tanto Freud como Jung foram homens de seu tempo, declaração que contém tanto um elogio quanto uma crítica a como conduziram o desenvolvimento de suas respectivas teorias e práticas. Dito isso, creio não precisar entrar em seus deméritos teóricos e práticos, muito bem apresentados pelos professores Neubern e Rey, preferindo dizer que aquilo que tomei de valioso de ambas as escolas foi a coragem, face a um mundo cada vez mais calcado sobre parâmetros quantitativos, de pensar o outro como um fenômeno complexo e sofisticado sobre o qual é possível construir sentidos, perceber e propor configurações, sem necessariamente recorrer a conceitos oriundos de contextos discursivos estritamente experimentais e/ou biomédicos, preservando ainda um bom grau de lirismo e especulação filosófica.

Não precisar recorrer a uma grande parte do discurso gerado pelo conhecimento “científico” psicológico, ou psicanalítico, sem dúvida permite maiores graus de liberdade e perspectivas clínicas ao se abordar a subjetividade. Entretanto minha proposta não se arvora em um relacionismo radical (Gergen),  apesar de considerar válida, e fundamental, a critica às construções da ciência dominante e a proposta, e busca, do desenvolvimento de formas alternativas de pesquisa, como sugerido pelos construcionistas sociais. Assim surge, imperiosa, uma demanda dessa quebra com alguns dos conceitos das disciplinas psi: um novo arcabouço metodológico. É nesse espaço que as ciências humanas que estudei, principalmente a antropologia e o método etnográfico, vem suprir a demanda não só de um quadro referencial como também de ferramentas para a observação do outro, o sujeito que me interpela. Esse deslocamento e empréstimo metodológico parte da observação - e não é novidade dizê-lo - de que a psicologia ainda não superou determinados dilemas metodológicos que outras ciências antropossociais discutiram a partir da década de sessenta. Devido a esse vácuo político-discursivo na história da psicologia, parti em busca de uma síntese, e aglutinação, de certos conceitos das ciências antropossociais que permitissem nortear minha atuação em um cenário clínico: assim, parto do princípio de que a subjetividade pode ser compreendida como uma topografia íntima, viva, que pode ser cartografada e interpelada, das mais diferentes formas, a produzir sentidos acerca de si. Empreende-se, portanto, uma viagem onde nativo e viajante se tornam autores, atores e platéia de uma narrativa cujo objetivo é promover novas configurações de território.

Esmiuçarei o significado das últimas duas frases, já que a comparação da subjetividade a um território a ser mapeado pode causar algumas confusões conceituais; no entanto devo avisar que esta construção de sentido não necessariamente passa pela reapresentação de certos autores, cânones teóricos e as decorrentes reconfigurações de seus conceitos, muito pelo contrario: gostaria que as imagens que a frase suscita, de chofre, sejam privilegiadas acima de qualquer re-inscrição semântica acadêmica, pois seu significado metafórico é de muito mais valia que a erudita genealogia dos saberes que confluem para formá-la. Por outro lado tampouco gostaria que o privilégio à metáfora fosse considerado uma forma de escamotear uma polimatia; assim será feita, também, referência aos autores que sustentam o raciocínio por trás das imagens apresentadas.

Para que a subjetividade seja concebida como um território, não farei o erro de pressupor que a psique seja uma ilha particular à deriva do continente social, separada dele pelo mar do corpo biológico e pelas brumas da transcendente privacidade metafísica da Mente. Isso me levaria a um problema conceitual que percebo como desnecessário: a separação do objeto e do sujeito (aqui gostaria de me apropriar das considerações metodológicas feitas por Thomas Csordas em Corpo/Significado/Cura a respeito do fenômeno religioso, onde ao usar Merleau-Ponty e Pierre Boudieu, Csordas implode essa dicotomia ao fazer uma ponte, respectivamente, entre o pré-objetivo e o habitus). Ao contrário, percebo a subjetividade muito mais como um tecido denso e único, de trama variante, onde a interseção dos discursos e as performances que o formam podem configurar desde um complexo afetivo até uma instituição, como o Estado. Usei um termo emprestado da matemática – interseção - porque uma metáfora geológica para estas (re)configurações seria imprecisa, pois elas não ocorrem por sedimentação ou acúmulo, como o fato social e as instituições sociais de Durkheim. São mais bem encontros que ocorrem devido ao hasard objectif, conceito proposto por André Breton, escritor surrealista, que descreve encontros e coincidências que se rebelam a um continuum lógico e no entanto parecem ser governadas por algumas forças numinosas, configurações ou conjuntos perfomático-discursivos dotados de certa autonomia (idéia nada original que deriva diretamente de algumas considerações feitas por Jung, que achei interessantes, quando este propõe o conceito de arquétipo). Essa força numinosa não se refere a um fenômeno misterioso e estritamente intuitivo, já que pode corresponder, e certamente dialoga em boa relação semântica, com os termos tanto de demônio e sujeito como definidos por Neubern no glossário de seu livro Complexidade e Psicologia Clínica.

Retomando: território é o tecido que dobra, se sobrepõe, intersecta, criando uma paisagem cuja topografia se apresenta, e será reapresentada ao longo da viagem de reconhecimento (interpretação e construção) que será processo clínico que proporei.

Essa não foi uma alquimia discursiva fácil de ser concebida. Representa um resumo superficial do que penso a respeito de métodos clínicos, e ainda estará sob constante reformulação enquanto esteja clinicando. Entretanto, como de fato se dá minha conduta, pragmaticamente, dentro de um consultório? Percebo nitidamente que as teorias que absorvo permitem estas e outras reflexões fundamentais para o esboço de linhas de ação que guiem minhas intervenções; mas, uma vez posto frente ao Outro, meu modus operandi se vale muito mais de uma episteme da espontaneidade, constituída pelas mais variadas referências, do que efetivamente a execução de técnicas derivadas de um conjunto de postulados consagrados. Percebo que o conceito supramencionado, episteme da espontaneidade, pode parecer um tanto incerto, afinal leva em si um problema: como posso dar estatuto de conhecimento válido e fazer uso sistemático de intervenções que ocorrem como configurações passageiras e instantâneas? 

Posso começar por estabelecer que não é possível executar uma análise densa e complexa da produção do meu paciente enquanto estou a ouvi-lo. Ela ocorrerá sempre a posteriori e será usada como mapa do território do Outro que guiará nossas, as do paciente e minhas, intervenções e (re)significações. Portanto, dentro do espaço clínico, invariavelmente estarei reagindo in loco ao seu discurso e performance, sintetizando em minhas intervenções tudo aquilo que possivelmente me permita gerar novas zonas de sentido dentro de nosso território. É nesse ponto que apresento a outra fonte, não discursiva e teórica, que norteia minha intervenção e de onde se origina o conceito a ser explicado: meu corpo. Há declaradamente um caráter intuitivo, do não dito, que permeia a relação clínica e este é encarnado, ou seja, se origina das práticas sócio-psico-espirituais que foram e são inscritas em meu corpo, que moldam meu discurso e performance em seus três estados de mente, como propostos por Pierce. Desde os movimentos afetivos do desejo, minha performance corporal (postura, respiração, coloratura da voz) até a escolha das imagens que apresentarei como sínteses e/ou impressões do que me proponho a interpretar e construir se originam e duram um instante - a expressão de uma configuração que emerge de uma interação complexa de signos. A analogia que elucida melhor esse processo é a de um relâmpago: parece ocorrer espontaneamente se não levarmos em consideração que é o resultado perceptível de uma interação complexa, vigorosa e quase imperceptível de cátions e ânions que o precede.



Parece-me que esta exposição inicial de como articulo minhas intervenções clínicas serviu como quadro geral. Comparando certas idéias e práticas que desenvolvi com o que tenho lido recentemente de Erickson e Neubern, percebo que há vários pontos onde ocorrem encontros, ampliações, sugestões e reconstruções conceituais das quais gostaria de me imbuir e desenvolver. Entre essas se destacam a hipnose e determinados desafios epistemológicos tais como os que são apresentados por Neubern em seu primeiro livro. Devo admitir, no entanto, que ainda há muito mais a ser discutido, perguntas que venho me fazendo relacionadas à; 1) como repensar o setting clínico fora da instituição física clínica; 2) como melhor articular a produção de afetos que ocorre entre paciente e psicólogo, usando a interação de seus corpos como fonte de produção de sentidos; 3) a possibilidade de ter uma relação clínica onde ambos, o paciente e o psicólogo estão em transe; 4) como desenvolver ferramentas discursivas de análise e reinterpretação de si e ensiná-las ao paciente; 5) como utilizar a literatura, e alguns elementos de sua análise, como fonte de produção de sentidos e reflexão teórica.

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