quarta-feira, 17 de julho de 2013

Um ensaio de Etnopsiquiatria para V...






Alguns meses atrás recebi um reencaminhamento na clínica onde trabalhava. Havia uma paciente que estava interessada em uma intervenção mais voltada para gerenciamento do estresse e ansiedade em situações específicas. Curiosamente, ao seu ver, esse gerenciamento era algo que poderia ser feito por alguém que fizesse hipnose. A posteriori ela me disse que essa relação da hipnose com redução do estresse não era uma noção obscura que havia apanhado por acaso, V. já tinha um histórico de execução de uma série de práticas de si, tais como a meditação e o yoga, que lhe haviam proporcionado estados de transe relaxantes e revigorantes.


Ao encontrar-me com V. pela primeira vez, esta apresentou sua queixa: sofria de uma ansiedade paralisante em certos momentos de sua vida, quando devia performar sob exigências e expectativas consideráveis. Conversando com V. ao longo das próximas duas sessões, começamos a mapear suas topografias, seus mundos, mal sabendo que o plural de mundo era literal: V. é médium espírita e, como as entidades desses mundos, por eles transita todos os dias.

Com o aprofundamento do vínculo, surgiu uma pergunta: se seu possível novo psicoterapeuta era espírita ou não, ou se pelo menos tinha algum trânsito no mundo da espiritualidade. Suas experiências prévias com psicoterapia tinham sido muito boas, organizadoras e produtivas, mas havia uma parte de si que nunca  tinha  podido mostrar, uma parte fundamental de se fazer no mundo, ou melhor, se fazer nos mundos. Minha paciente, relembrando, é uma médium espírita em desenvolvimento, ou seja, um sujeito que transita em universos múltiplos onde suas experiências ultrapassam as fronteiras do discurso, do corpo, dos constructos da res extensa objetiva enclausurada nos axiomas fundadores das ciências exatas. Ela vivencia um contato cotidiano com o Sagrado que permeia todos os aspectos da sua produção subjetiva de sentidos, assim pertencendo cotidianamente a vários mundos, estes populados por entidades dotadas de agência efetiva.

Posto diante da pergunta, tive que fazer uma breve busca em mim mesmo, que não foi nem tão breve nem de fácil resposta. Fui a um lugar em minha subjetividade que, como me foi ensinado, não tinha lugar na clínica, apesar de já ter deixado certas manifestações desse lugar permearem a minha prática. Entre um debate de vozes, e fenômenos nem tão somáticos, minha resposta foi a de que não era espírita, mas que minha espiritualidade transitava em espaços de sentido que dialogavam com a sua tradição espiritual. Mal sabia que de um "sim" resultaria num considerável, e não tão subterrâneo, terremoto epistêmico e subjetivo.

A sincronia dos processos pelos quais passava no momento, devo admitir, começou a me preocupar. Afinal parecia haver evidência incontestável de que uma volição supra-objetiva estava de alguma forma a não jogar dados comigo. Encontrava-me fazendo uma matéria do mestrado que discutia as possibilidades de um rico diálogo entre o universo espiritual do sujeito, paciente, e uma prática clínica que acolhesse essa produção e criasse, dentro das devidas demarches epistêmicas, novas zonas de sentido a serem exploradas pelo processo psicoterapeutico.

Mas como seriam delimitadas essas zonas? Como seria a abordagem que permitiria meu trânsito pelos mundos, pelas topografias que seriam exploradas? Como seriam compreendidas as experiências que viveríamos juntos na construção do nosso diálogo, o único lugar sobre o qual eu poderia dizer alguma coisa?

Entre livros, aulas, reflexões, sessões e sonhos, um caminho começou e ainda está a ser esboçado.

Em primeiro lugar, foi fundamental entender o que era a manifestação desse mundo, delimitar o Sagrado. Um axioma para o núcleo duro de Verdade, e talvez um dos poucos traçados por Rudolf Otto e William James a respeito do fenômeno religioso: o Sagrado é inefável, não se pode falar sobre ele. Este não pode ser exaurido numa construção sentido que o resuma a um código moral racionalizado e hipostasiado em uma ou mais representações do Sagrado; um conjunto de normas sócio-culturais de um determinado grupamento humano em um determinado período histórico ou reduzido às confabulações imaginativas de mentes um tanto enérgicas. O Sagrado, como diz Otto, é numinoso, é um Outro totalmente diferente que se encontra fora de mim, não emana de minha agência, e que se faz sentir em mim das mais diferentes maneiras, como na "sensação de dependência" do ser criatura, que se seguirá da sensação de sua "superioridade absoluta".

Parece que aqui faço nada mais do que uma pequena e breve conceituação que estabelece o recorte que será utilizado para delimitar o fenômeno. Ledo engano. Ao perceber o Sagrado como Outro totalmente diferente, ocorre um deslocamento paradigmático expressivo, onde a colonização pela psicologia do fenômeno espiritual, cai por terra. É necessário se levar em conta que este movimento colonizador busca impor uma experiência cultural hegemônica. Assim dito, foi necessário desconstruir um dos problemas mais evidentes dessa colonização: o fato de que a psicoterapia, como possibilidade de construção e de interpretação científica da experiência do sujeito, tem se feito no mundo sustentada pelos métodos de produção capitalista-mercantil que em sua origem – revolução industrial europeia, diga-se então "branca" - e desenrolar são responsáveis pelo modo de pensamento técnico-calculante observado por Heidegger.

Esse modo resulta de um questionamento metódico e sistemático da realidade onde padrões regulares de recorrência são propostos e buscados para que se possa estabelecer um postulado que seja verdadeiro a respeito de um aspecto da realidade, ou natureza. Há, inegavelmente, uma proposta de desnudar a realidade para que esta revele os mecanismos que a fazem ser. Heidegger diz que tal pensamento nos faz “(...) desvelar a natureza como dis-ponibilidade (Bestand): tudo se encontra disponível para ser extraído, transformado, estocado, utilizado, consumido. Todas as coisas, inclusive o próprio homem, são dispostas para serem colocadas à serviço da pretensão e de domínio e controle humano”.

Essa dis-ponibilidade encontra-se nas práticas da psicologia clínica a partir do instante em que nos propomos a fazer ciência sem examinar as premissas epistêmicas e discursivas que subjazem às nossas intervenções. Aqui vamos para além do olhar de Medusa, já que ademais de já ter congelado o sujeito com o olhar do pensamento técnico-calculante de uma psicologia clínica muitas vezes acrítica, como um Pigmaleão, estamos nos propondo a esculpi-lo desconsiderando sua experiência espiritual subjetiva. Esta foi transformada, descaracterizada em algo passível de apreensão e adequação a alguns conjuntos de paradigmas que sustentam a psicologia clínica. De fato, não se seguem as linhas do mármore e sim a forma idealizada pelo escultor.

Dá-se porém, como disse anteriormente, que o Sagrado é inefável, não se pode falar sobre ele, não se pode apreendê-lo nem reduzi-lo estritamente a fenômenos imaginativos da psiquê, anomalias de uma patologia ou um conjunto de repercussões das interações de um determinado contexto sócio-cultural. Não só, este é responsável por uma inserção do sujeito no mundo que é inextricável de sua construção ontológica, afinal, o Sagrado ao ser um Outro permite que me eu possa me reconhecer como sujeito. O Sagrado gera sentidos de identidade, pertencimento e vocação. Nesse momento percebi que o que me havia sido ensinado na graduação era insuficiente e que me havia tornado um congelador de sujeitos, que mesmo ao legitimar a experiência espiritual do outro, ainda a reduzia a um conjunto de saberes que não fosse o Sagrado, que resistisse aos instrumentos do meu laboratório imaginário autoreferencial.

Diante da perda do solo teórico, já reconhecidamente precário, no qual me sustentava, algum novo paradigma devia se apresentar. E, mais uma vez, não deixando a sorte aos dados, fui apresentado à etnopsiquiatria de Tobie Nathan.

O autor começou por desnudar minha, nossa em alguns casos, forma de terapia ao declarar com muita pertinência que em algumas partes do mundo ocidental, e lembremos do Heidegger recém mencionado, o fazer técnico-calculante nos deixou sós. A ciência, como método "confiável" de produção de sentido, ascendeu ao estatuto de verdade fundamental na Europa quando, devido a algumas questões institucionais, econômicas e políticas, a Igreja começou a perder o seu lugar de axis mundi et homini. Assim, uma realidade antes em profunda relação com o Sagrado começou a se distanciar deste buscando uma concepção de mundo que conseguisse lidar com as exigências de sua crescente complexidade. Deus então começa a sair do palco, e assim fomos obtendo o protagonismo do nosso destino, com seu corolário, a solidão.

Fomos obrigados a repensar tudo, o mundo e nós mesmos, em nossas múltiplas possibilidades e condições. A que me interessa aqui é a loucura, que antes muitas vezes concebida como dádiva divina - configuração subjetiva que não se enquadra dentro de determinados territórios -, foi repensada e revista a luz da ciência e seu ser solitário: um fenômeno que não tem lugar a não ser no sujeito, patologia - doença - que pode residir em sua biologia, em sua história singular, nas repercussões de sua educação ou estrutura de personalidade. Doença que num mundo de especialistas desalmados, só pode ser diagnosticada pelos mesmos. Assim, técnicos e calculistas, movidos pela dis-ponibildade do mundo desalmado, buscou-se simplificar o sujeito em conjuntos de axiomas, mutilado-o em partes interdependentes, isolado-o de uma natureza que antes era o meio que unia criaturas à criação e finalmente alienado-o de si e seu grupo social.

Como poderia a etnopsiquiatria pensar essas configurações subjetivas e sociais em um cenário brasileiro contemporâneo? Como poderia eu, sujeito macheteado pelo aço colonizador da ciência Ocidental, percorrer a topografia que com tanto afeto e confiança a minha paciente permitia adentrar?

Seria necessário fazer uma mudança epistêmica significativa, me parecendo a proposta de T. Nathan a mais coerente com o cenário polifônico das subjetividades brasileiras. O começo seria abandonar a loucura no sentido Ocidental, presa ao sujeito passivo de uma psicopatologia ou configuração de personalidade que o retira da norma e isola-o num diagnóstico que o torna o único responsável por seu sofrimento. Não poderia mais pensar assim, já que a teoria da psicopatologia nas culturas ocidentais é construída fazendo paralelos com a descrição e teorização acerca de determinados fenômenos biológicos. Vide a psicopatologia e psicanálise: em ambos os casos o sintoma é costurado à pessoa e depois justificado por uma espécie de ascensão lógica; o discurso dessa ascensão é sustentado por um grupo de especialistas inseridos no paradigma técnico-calculante, e ao se institucionalizar, desqualifica outras formas de pensamento, classificando-as como produtos da crença.

Portanto a patologia, com seu movimento taxonômico, deveria ser repensada e descontruída, sendo forçada a abandonar o seu lócus endógeno e sua construção bio-psicológica. Seria necessário fugir à submissão da regra cega e implacável da natureza biológica darwiniana, que tira o sujeito de seu universo e suas afiliações possíveis, afinal uma psicopatologia é um conceito disjuntor, que insere o sujeito numa categoria estatística. Por consequência a produção de sentido da minha paciente teria que ser apreendida em seu próprio contexto, onde sua comunhão com seu grupo seria mantida - a casa espírita que frequenta e a presença de seus guias espirituais -, onde seu percurso terapêutico continuaria a interpelar o invisível e a eficácia das forças e entidades de seu mundo continuariam a ser legítimas.

Eu teria que tomar alguns riscos, então. Mas quais? Como especialista desalmado, mas nem tanto, teria que parar de decretar a existência de um objeto que só poderia ser percebido por mim mesmo, uma determinada dinâmica de personalidade ou psicopatologia. Não poderia fazer uso de instrumentos que descrevessem o objeto, que o tornassem opaco a minha paciente, que já possuía seus próprios meios de descrição e negociação com o objeto de sua queixa. Portanto não poderia, num movimento congelante e autoreferencial, validar meus próprio instrumentos a despeito dos seus; teria sim de me deslocar do meu bastião teórico para de fato autenticar seus próprios instrumentos. Portanto sua queixa não mais seria vista com um transtorno de ansiedade e sim como uma desordem que advém da riqueza de interações do mundo, populado por seres que agenciam a realidade do sujeito das mais variadas formas. Esse mundo torna-se então um nó, carrefour ou encruzilhada onde o sujeito se faz e é feito interagindo com essa riqueza que o circunda e permeia. A ansiedade de V. não mais seria um fenômeno que se exaure numa diagnóstico psicopatológico, e sim o resultado da negociação de forças muitas vezes antagônicas que resultam numa tensão subjetiva que cristaliza sua produção de sentidos.

Enfim, o sujeito atomizado ou liquefeito deixaria ambas as condições para se tornar algo muito mais parecido a um aleph, como concebido pelo escritor argentino Jorge Luís Borges que denomina de aleph o ponto que contém todo o universo. Como em uma epifania, aleph é uma compreensão universal através da observação de um ponto que reúne "tudo ao mesmo tempo, e agora".

Para tratar minha paciente tive então que continuar revendo as premissas do que seria uma intervenção terapêutica, já que esta relatou algumas vezes intervenções espirituais paralelas as minhas que a estavam ajudando a superar e curar determinados eventos que haviam ocorrido em sua realidade tanto objetiva quanto espiritual.

Num primeiro momento ocorreu em mim um movimento acadêmico incarnado de buscar alguma coerência no que lhe ocorria ao tentar reduzir sua experiência no meu arcabouço teórico. Me detive e lembrei o que havia estudado até o momento sobre etnopsiquitria. A redução seria uma mutilação prepotente da experiência do Outro, que até poderia pretensamente ser "traduzida" para um outro sistema de pensamento. Porém, seria mesmo possível fazer essa tradução de sentidos oriundos de um universo múltiplo para um universo único? Não. Os sentidos que seriam desconsiderados no processo não só desconstruiriam impiedosamente a ontologia da minha paciente como desempoderariam um sujeito que se faz de forma autêntica num mundo dotado de agência autêntica, eficiente e eficaz do ponto de vista de sua ocorrência no cotidiano e intervenção terapêutica.

Portanto levei ao pé da letra as observações de Nathan: considerei que existe uma série de sistemas terapêuticos para além dos inscritos no paradigma científico ocidental, que nenhum deles é redutível ao nosso, já que lidam com mundos que não contemplamos na unicidade desertificada do nosso e, finalmente, não estamos falando de vãs crendices, e sim de complexos sistemas conceituais dotados de uma lógica intrínseca perfeitamente coerente com o mundo no qual ocorrem. Objetivamente, passei a utilizar os sentidos que eram trazidos por minha paciente como as referências de seu mundo, deixando-a mostrar-me como esse mundo é construído e como funciona. Assim, é a etnografia que irá permitir adentrar o mundo do outro com suficiente relatividade cética para fazer a transliteração do sentido subjetivo, especialmente quando proposta sobre premissas fenomenológicas que não exaurem o fenômeno na linguagem, intersubjetividade social (histórico-cultural) ou redução estruturalista. Por quê transliteração? Porque está para além de uma tradução, já que conta com o fenômeno da compreensão e construção subjetiva do intérprete; é um trabalho ontológico de codificação orientado por uma ética que desponta de um projeto científico que se arrisca ao não se opor à alteridade, buscando sua resistência como se fosse um objeto de laboratório.

Portanto estou buscando estabelecer uma relação da psicoterapia com a religião onde deve ocorrer um comércio, um encontro onde não há preponderância ou anulamento de um ou outro, propondo um interstício onde ocorre um diálogo entre os especialistas de ambas as áreas. Nesse caso, sua guia e eu.

A terapia de V. continua, ainda estamos no começo, mas vejo que terei de desempenhar  dois papéis no processo: o do diplomata, um termo interessante que foge ao legado metodológico do antropólogo, da carga institucional da sua profissão. O diplomata também é oriundo de uma instituição, o Estado, uma configuração multi e macro institucional que busca representar a totalidade de uma população, numa proposta metonímica discursiva e performática do "espírito" daquela nação, ou no caso da minha paciente, dos "mundos unidos de V.". E, dentro do possível, terei de atuar também como um psicopompo, ou daimon, um mensageiro que intermedia, mas não perde sua característica de mensageiro dos deuses e dos homens. O daimon é um construtor de realidade, o princípio de movimento, que, se pensarmos na idéia de narrativa cristalizada, pode ser aquele que traz movimento novamente á narrativa num movimento construtivo-interpretativo.

Finalmente, dentro dessa perspectiva, buscarei desenvolver uma série de práticas de si (Foucault) que possam sustentar o desenvolvimento da minha sensibilidade à experiência espiritual do outro. Para tanto seria fundamental estabelecer uma hermenêutica do contato e uma epistemologia da espontaneidade onde se poderia desenvolver 1) o conhecimento pragmático e sistematizado de práticas que permitam alguma forma de acesso as experiências subjetivas do Sagrado - ouvir o outro - para 2) poder comover-se com o outro num ato espontâneo de compaixão, numa construção, uma dança conjunta de ontologia ao ser impactado, ser tocado, falar com o coração, buscando a abertura do leque de produção de sentidos, ao garantir uma expansão do leque semântico da narrativa e performance de V.

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